A denúncia de dois investidores que levou a Cyrela à mira da CVM e da PF

Ex-sócios de construtora em empreendimento em SP ganharam arbitragem, não receberam e dizem que Cyrela informou números errados em balanço

Start Jardim Clube São Bernardo, em São Bernardo do Campo, que deu origem ao litígio entre investidores e a Cyrela
02 de Setembro, 2022 | 12:12 PM

Bloomberg Línea — O engenheiro Reynaldo Rosemberg e o arquiteto Renato Gurevich descrevem como uma luta de “Davi contra Golias” o litígio de dez anos que travam contra a Cyrela (CYRE3), uma das principais e maiores empresas do mercado imobiliário no país, e companhias associadas.

A origem do litígio foi a negociação de um terreno em que foi erguido no início dos anos 2010 o Start Jardim Clube São Bernardo, um dos maiores empreendimentos da Cyrela no ABC Paulista. A então parceria se estende, uma década depois, em processos judiciais, denúncias na Comissão de Valores Imobiliários (CVM) e um inquérito da Polícia Federal que apura a suspeita de eventuais crimes contra o mercado de capitais e contra o sistema financeiro nacional.

O inquérito na PF foi aberto a pedido do Ministério Público Federal a partir de uma denúncia dos dois empresários. Apura se a Cyrela feriu as leis das Sociedades Anônimas – “realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a manipular o preço das ações” (artigo 27-C da Lei 6.385/1976) ou dos Crimes contra o Sistema Financeiro – “inserir elemento falso” em balanço (artigo 10 da Lei 7.492/2986).

Na CVM, a apuração é sobre “a suspeita de que a insuficiente auditoria realizada [nos balanços da Cyrela de 2016 a 2018] tivesse como objetivo direto a manipulação das informações financeiras do grupo, de modo a alterar significativamente a percepção do mercado e influir na negociação de seus ativos na bolsa de valores”, conforme parecer da área técnica da CVM ao qual a Bloomberg Línea teve acesso. A investigação foi instaurada em 25 de abril deste ano.

PUBLICIDADE

Em nota à Bloomberg Línea, a Cyrela informou que o MPF pediu o arquivamento do inquérito na Polícia Federal, seguindo o que foi feito na esfera estadual (mais abaixo). Sobre a CVM, a incorporadora disse que “segue dentro do prazo para manifestações sobre o caso”.

No pedido de arquivamento do inquérito feito pelo MPF, a procuradora da República Luciana da Costa Pinto disse que não viu “existência de alteração artificial dos valores das demonstrações financeiras das investigadas AK19 e CYRELA. Isso porque, os auditores juntaram documentos para comprovar que os trabalhos de auditorias realizadas levaram em considerações as Normas Brasileiras de Contabilidade”.

A procuradora ressalta, no entanto, que, como a investigação na CVM segue aberta, se a autarquia encontrar “novos elementos de prova”, a investigação policial pode ser reaberta.

PUBLICIDADE

Entenda o caso

O cerne da acusação de Rosemberg e Gurevich são alegadas discrepâncias entre dados contábeis apresentados pela AK 19, uma sociedade de propósito específico (SPE) que tem a Cyrela como sócia, entre os anos de 2016 e 2019, e os balanços apresentados pela companhia à CVM.

O ramo imobiliário faz uso de SPEs para os projetos, pois permitem que cada empreendimento tenha o seu próprio CNPJ e isso evite que eventuais problemas em uma obra afete as demais de uma incorporadora.

A Cyrela teve receita de R$ 2,9 bilhões no primeiro semestre deste ano e registrou lucro líquido de R$ 313 milhões no período. No ano passado, as vendas foram de R$ 5,5 bilhões, e o lucro líquido, de R$ 914 milhões. A construtora é sócia de mais de 700 SPEs.

De acordo com a denúncia de Rosemberg e Gurevich contra a empresa, a Cyrela teria informado dados errados em seus balanços, levando o mercado a conclusões errôneas sobre sua situação financeira.

Eles dizem que, em 2016, durante a crise do setor imobiliário decorrente da recessão no país, a empresa teria informado números falsamente positivos, em suposta tentativa de atrair investidores e se capitalizar para enfrentar os anos seguintes, quando lançou diversos resultados negativos em seus balanços.

“No caso envolvendo a AK19, a informação errada e não auditada fornecida ao mercado pela Cyrela impacta diretamente na cota de lucro de seus acionistas. Pode, também, servir de instrumento para a manipulação da cotação do valor de suas ações, seja para valorizá-las para oferta ao público, seja para depreciá-las para eventual recompra pela própria companhia, ou ainda para não distribuir os lucros devidos a seus acionistas”, diz peça protocolada na PF pelos advogados de Rosemberg e Gurevich.

Em ocasiões anteriores, no curso de um inquérito da Polícia Civil (que terminou arquivado em 2019 porque o delegado que presidiu o inquérito e o Ministério Público entenderam que não houve crime e que o assunto já estava em discussão na esfera cível), a Cyrela alegou que houve “erro material” nas discrepâncias entre a contabilidade da AK 19 e o balanço que a Cyrela apresentou ao mercado.

PUBLICIDADE

A Bloomberg Línea analisou as mais de mil páginas do inquérito aberto pela Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros da Polícia Federal de São Paulo e dos autos da denúncia feita por Rosemberg e Gurevich na CVM.

Nos dois fronts, o penal (PF) e o administrativo (CVM), a Cyrela, que tem ações negociadas na bolsa brasileira, a B3 (B3SA3), foi acusada de usar empresas controladas indiretamente, “de forma sistêmica e pré-ordenada, para não se submeterem ao controle da Comissão de Valores Mobiliários”.

O começo da disputa empresarial

A RRG Incorporadora, empresa de Rosemberg e Gurevich, negociou e obteve as autorizações para a construção em um terreno de 19 mil metros quadrados no Jardim Olavo Bilac, região nobre de São Bernardo do Campo.

Com o ativo em seu portfólio, em 2010, a RRG estabeleceu uma parceria com a AK19 Empreendimentos e Participações, uma sociedade de propósito específico que tem como sócia indireta a Cyrela (a Cyrela controla 99% da empresa Plano Eucalipto Empreendimentos Imobiliários, que tem 26% do capital da AK19). Sócio da Cyrela, o empresário André Kissajikian, do ramo imobiliário, controla 74% da AK19. O desenvolvimento do empreendimento imobiliário tinha previsão de mobilizar de R$ 500 milhões.

PUBLICIDADE

Pelo acordo inicial, o terreno onde seriam construídas as torres, trazido pelas empresas do Grupo RRG, seria adquirido em nome da AK19 e, uma vez registrada a respectiva escritura em cartório, a RRG seria admitida como sócia na própria AK19, com participação de 10% na sociedade.

Pelo acordo, a RRG tinha opção de participar da construção dos prédios de apartamento ou sair do empreendimento com a remuneração de 5% do valor da obra – algo em torno de R$ 11,2 milhões em 2012.

Como a AK19 recusou-se a pagar, Rosemberg e Gurevich acionaram a empresa no Centro de Arbitragem Brasil Canadá, o tribunal privado definido no contrato para resolver os litígios. Em 2014, o tribunal arbitral deu a vitória aos incorporadores independentes e condenou a AK 19 a pagar R$ 11,4 milhões.

O lado perdedor procurou a Justiça para anular a sentença arbitral. A disputa continua na Justiça de São Paulo e o valor atualizado da causa já está em R$ 34 milhões.

PUBLICIDADE

Enquanto o litígio se desenrola na esfera civil, os dois donos da RRG independentes dizem ter reunido provas de que a AK19 e a Cyrela deliberadamente agiram não só para prejudicá-los mas também para supostamente manipular informações públicas com dano potencial para acionistas e para o mercado de capitais - daí a origem das denúncias que levaram às investigações.

Primeiro, Rosemberg e Gurevich acusaram os dirigentes da AK19 de estelionato na Polícia Civil de São Paulo, mas o inquérito foi arquivado. Depois, com base em documentos contábeis dos balanços da Cyrela, os dois encontraram as alegadas discrepâncias no que dizia respeito ao empreendimento de São Bernardo do Campo.

PUBLICIDADE

Carta a Efraim Horn

Nas denúncias à CVM e à PF, os donos da RRG afirmam que há discrepâncias relevantes entre a contabilidade da AK19 e os balanços da Cyrela no curso do litígio.

Em 2016, a AK 19 reportou patrimônio de R$ 46,7 milhões e lucro de R$ 9,8 milhões. No balanço da Cyrela, os dados relativos ao mesmo empreendimento são diferentes: AK19 com patrimônio de R$ 41,7 milhões e lucro de R$ 4,8 milhões.

Em 2019, a AK 19 reportou patrimônio de R$ 23 milhões e prejuízo de R$ 9,2 milhões. No balanço da Cyrela, o mesmo empreendimento aparece com patrimônio de R$ 20,2 milhões e prejuízo de R$ 10,98 milhões.

PUBLICIDADE

Segundo a denúncia dos donos da RRG à CVM e à Polícia Federal, parte dos valores de receitas com as vendas dos imóveis saiu do caixa da AK19 para a AK Realty Incorporação, vinculada aos controladores da AK19, por meio de empréstimo a “partes relacionadas”.

Ao todo, saíram do caixa da empresa da qual a Cyrela é sócia R$ 5,3 milhões na forma de empréstimos entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2021.

“Por causa do risco de leilão para executar a dívida, eles liquidaram os apartamentos, venderam com prejuízo de mais de R$ 10 milhões. Agora, esse prejuízo é da AK19? Não, é do cara que comprou ações da Cyrela”, disse Rosemberg à Bloomberg Línea.

PUBLICIDADE

Questionado pela reportagem sobre se o valor da discrepância não seria pequeno dentro do balanço da Cyrela para levantar a suspeita de manipulação de mercado, Rosemberg respondeu: “Isso aqui nos Estados Unidos, com a SEC [o órgão de fiscalização do mercado americano] de olho, estava todo mundo preso. A gente está aqui pedindo pelo amor de Deus para a CVM olhar o que está acontecendo nas barbas dela. Se isso estiver acontecendo com outras controladas da Cyrela, é sério”.

Outra irregularidade, segundo os donos da RRG, foi deixar de fora do balanço da Cyrela, por cinco anos, o provisionamento da dívida resultante da perda no tribunal arbitral e da disputa da Justiça. Rosemberg e Gurevich afirmam que avisaram o CEO da Cyrela das alegadas irregularidades na AK19 ainda em 2018.

“Mandamos uma carta em 2018 avisando que estávamos falando com os caras dele ‘aqui embaixo’, ‘talvez você não tenha conhecimento de tudo que está acontecendo’, mandamos uma carta também para a KPMG [empresa que faz auditoria dos balanços], avisando que não havia o provisionamento. Quando uma empresa dessas não provisiona uma dívida, ela manipula o balanço porque dá a entender que aquela dívida não existe”, disse Gurevich.

PUBLICIDADE

“Mandamos a carta, avisamos a Cyrela, mas não houve nenhuma atitude. Provisionou a dívida? Não.”

O que diz a Cyrela e a AK19

À Polícia Federal, a defesa da AK 19 afirma que a RRG tentou trazer novamente à tona fatos já discutidos no inquérito da Polícia Civil, que foi arquivado em 2019.

“Como desdobramentos dessa discussão, em 2018, a pedido da RRG, foi instaurado um inquérito policial na esfera estadual, perante o 9° Distrito Policial (inquérito policial no. 0090773-14.2018.8.26.0050), que já se encontra arquivado, tendo sido reconhecida a atipicidade de todos os fatos acusatórios (…)”, escrevem os advogados da AK 19. Atipicidade é o termo jurídico que designa a inexistência de crime.

“Não obstante os autos tenham sido arquivados com análise de mérito, a RRG trouxe novamente ao conhecimento de V. Sa., para apreciação na esfera federal, crimes supostamente cometidos”, continuam.

No curso do inquérito arquivado pela Polícia Civil em 2019, tanto a Cyrela quanto o seu presidente, Efraim Horn, negaram as irregularidades alegadas. A companhia atribuiu a diferença contábil a “erros materiais”. Quando ouvido no inquérito da Polícia Civil em 2018, Horn disse que, embora seja sócia, “a Cyrela não tem nenhuma gestão na AK 19″.

Na mesma ocasião, a defesa da Cyrela afirmou que, como não detém o controle acionário da AK 19, os dados contábeis referentes ao empreendimento de São Bernardo do Campo foram para o balanço da forma como foi informado pelo empresário André Kissajikian, majoritário na AK 19.

“Uma vez que não detém a gestão financeira da AK19 Ltda., a peticionária consolida em seus demonstrativos financeiros as informações – tais quais recebidas – da própria AK19 Ltda”, defendeu-se a empresa naquele inquérito.

Em nota enviada à Bloomberg Línea, a Cyrela disse que “tomou conhecimento que o Ministério Público Federal recentemente postulou o seu arquivamento. Tal manifestação vai ao encontro da solução dada também à investigação instaurada anteriormente na esfera estadual também a pedido da empresa RRG Construtora, a qual foi igualmente arquivada por decisão judicial proferida a pedido do Ministério Público Estadual. E sobre a questão sobre a CVM, a empresa segue dentro do prazo para manifestações sobre o caso”.

Leia também

Explosão de maconha e serviço de delivery: o mercado de drogas na pandemia

Batalha dos VRs: a disputa no Congresso sobre o mercado de R$ 150 bilhões

Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.