Explosão de maconha e serviço de delivery: o mercado de drogas na pandemia

Organizações criminosas buscaram novas rotas de distribuição por causa das restrições de circulação, revelam especialistas e autoridades que investigam a atividade

Plantação de cocaína na Colômbia: apreensões da droga caíram durante a pandemia no mercado brasileiro
14 de Agosto, 2022 | 03:19 PM

Bloomberg Línea — A pandemia mudou tudo. Diferentes mercados tiveram que se adaptar a um mundo onde as pessoas não se encontravam mais em razão das medidas de distanciamento social para combater o avanço do coronavírus.

Com o mercado de drogas não foi diferente. Os negócios também foram adaptados, de modo que conseguiram prosperar mesmo durante a pandemia. A produção global de cocaína, por exemplo, atingiu um recorde histórico de 1.982 toneladas em 2020 (dados mais recentes), segundo o recém-divulgado World Drug Report 2022, do Escritório da ONU para Drogas e Crime (UNODC).

No Brasil, um dos maiores mercados de drogas do mundo, a tendência não foi diferente: entre janeiro de 2020 e o primeiro semestre de 2021, as rotas do tráfico se diversificaram, o que espalhou a distribuição de produtos por outros estados e por outras portas de saída do país.

É o que revela o relatório “Cocaine Insights 4 - O Brasil nas cadeias de suprimentos regional e transatlântica da cocaína: o impacto da Covid-19″, produzido pelo UNODC e pelo Centro de Excelência para a Redução da Oferta de Drogas no Brasil (CdE). É uma parceria entre o UNODC, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Secretaria Nacional Antidrogas do Ministério da Justiça (Senad). O relatório tem como base dados de apreensão de drogas pelas polícias federal e estaduais no período.

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Uma das principais conclusões foi que a pandemia causou uma mudança no perfil das apreensões, o que indica também uma mudança no padrão de circulação das mercadorias.

Por exemplo: as apreensões de cocaína caíram 37% nos 12 meses entre abril de 2020 e março de 2021, enquanto as apreensões de maconha cresceram 107% no mesmo período. Mas, se o número de apreensões aumentou, a quantidade apreendida por operação policial diminuiu.

Explosão da maconha na pandemia

O relatório afirma que “o mercado de maconha passou por uma explosão”, o que “provavelmente” se deve à redução das atividades de erradicação da droga no Paraguai, principal fornecedor de maconha ao Brasil. Em 2019, ano anterior à pandemia, a Polícia Federal havia apreendido 266 toneladas de maconha. No seguinte, foram 546,4 toneladas, segundo o corporação. Um aumento acima de 100%.

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“Já o impacto no mercado da cocaína teve mais nuances, com o aumento do fluxo para os estados do oeste a partir da Bolívia, do Peru e da Colômbia - possivelmente ligado a restrições das atividades transfronteiriças causadas pela covid-19 e a consequentes mudanças de modalidades [de transporte]”, aponta o relatório.

Isso indica que organizações dedicadas ao tráfico têm diversificado suas atividades e distribuído a droga em quantidades menores, segundo Antoine Vella, pesquisador do UNODC e um dos responsáveis pelo relatório, durante o evento de lançamento do estudo em julho. Segundo ele, especialistas entrevistados pelos pesquisadores contaram que organizações criminosas agiram em uma espécie de consórcio durante a pandemia para transportar a droga por dentro do país.

Tamanho de mercado

O mercado de drogas no Brasil é ilegal. Tráfico é um crime que a Constituição Federal equipara a hediondo — ou seja, é inafiançável, não pode ser objeto de acordo entre réus e acusação nem ser perdoado, além de ter uma progressão de regime prisional mais lenta. Segundo especialistas, não é possível, portanto, apontar com precisão qual o tamanho desse mercado no Brasil.

De acordo com o coordenador do Centro de Excelência para a Redução da Oferta de Drogas no Brasil (CdE), Gabriel Andreuccetti, para chegar a uma estimativa precisa sobre o mercado, seria necessário saber uma estimativa da produção e dos valores de exportação dos países produtores, o quanto o Brasil importa e, desse total, o quanto é consumido e o quanto é repassado a outros países e a que preços. Mas se trata de atividade clandestina, que não paga impostos nem publica balanços.

“Sabemos que o mercado segue a mesma lógica do lícito de oferta e demanda e que tudo acontece de forma muito lógica”, disse Andreuccetti em entrevista à Bloomberg Línea. “Mas o mercado ilícito tem variáveis que não conseguimos captar. Como o estudo se apoia em dados de apreensões, só conseguimos ver o que o Estado conseguiu capturar. Não consegue verificar, por exemplo, variáveis de preços.”

Só é possível fazer estimativas indiretas de uma fração do mercado. Levantamento do CdE com base em informações divulgadas pelas polícias a partir das apreensões de drogas entre maio e setembro de 2021, concluiu que um quilo de cocaína custa, em média, R$ 72,8 mil. Se o preço já era esse em 2020 e a Polícia Federal apreendeu 91,2 toneladas da droga naquele ano, é possível estimar que o mercado movimentou pelo menos R$ 6,6 bilhões nesse período.

Seguindo a mesma lógica, o mercado de maconha movimentou R$ 2,4 bilhões no primeiro ano da pandemia. Mas esses são dados apenas do que foi apreendido.

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R$ 20 bilhões ao ano

O promotor de Justiça de São Paulo Arthur Lemos Jr., coordenador de política criminal do Ministério Público de São Paulo, trabalha com a cifra de R$ 20 bilhões por ano para estimar o tamanho do tráfico de drogas no Brasil. Em entrevista à Bloomberg Línea, ele disse que esses são os valores utilizados pela comunidade de instituições envolvidas na repressão ao tráfico de drogas. “É uma cifra bem alta que mostra o tamanho do poder econômico dessas organizações”, avaliou.

Outro indicador indireto ao qual especialistas recorrem é o Fundo Nacional Antidrogas do Ministério da Justiça, o Funad. Ele é composto pelo dinheiro do tráfico apreendido pela Polícia Federal ou pela Polícia Rodoviária Federal e pela venda de bens de traficantes. Também compõem o fundo o dinheiro bloqueado por decisão judicial em casos federais de tráfico, além de multas.

De janeiro de 2017 a maio deste ano, a arrecadação total do Funad foi de R$ 544,8 milhões. Em 2021,a arrecadação do Funad foi de R$ 142,5 milhões. Neste ano, até 31 de maio, a arrecadação estava em R$ 84,2 milhões, já o dobro do arrecadado em todo o ano de 2018, de R$ 44 milhões.

O Ministério Público de São Paulo também produz dados que podem ajudar a entender o tamanho do mercado. O estado, segundo o estudo do CdE, concentra o tráfico e “funciona como um hub de distribuição para a cocaína que vem dos estados do oeste e é redirecionada aos portos, inclusive do Nordeste”.

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Entre janeiro e abril deste ano, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de São Paulo (Gaeco do MP-SP) apreendeu 13,7 toneladas de drogas: 6,8 toneladas de cocaína e 6,8 toneladas de maconha, além de crack e drogas sintéticas em quantidades bem menores. Foram ainda apreendidos R$ 3,3 milhões.

Em outubro de 2020, o Gaeco do MP de São Paulo deflagrou a Operação Sharks e apreendeu documentos que indicavam que o PCC movimentava R$ 1,2 bilhão por ano com o tráfico internacional de drogas. Desse total, só R$ 200 milhões estavam em contas bancárias. O resto estava em casas que servem como cofre ou havia sido enviado ao exterior de carro e até por meio de doleiros.

Novas rotas e aviões menores

A cocaína é, de longe, a droga mais rentável para o tráfico. Enquanto um quilo da droga custa R$ 72,8 mil em média, segundo o levantamento do CdE, um quilo de maconha, a droga mais vendida no Brasil, custa R$ 4,4 mil.

E é uma droga produzida para exportação, uma vez que o grande mercado consumidor é a Europa. Três países concentram sua produção: Colômbia, Bolívia e Peru, segundo o UNODC. Isso significa, portanto, que produtores e traficantes têm custos em moedas locais da América do Sul, mas conseguem vender a droga em euros, o que potencializa os lucros com a operação.

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O Brasil faz fronteira com os três produtores de cocaína e está entre eles e o Oceano Atlântico. Portanto, está em uma posição única: é vizinho dos produtores e consumidor do produto e serve como principal rota de escoamento, afirmou Gabriel Andreuccetti.

“No início da pandemia, notamos que houve uma queda na produção de cocaína, que logo depois foi retomada”, contou Andreuccetti.

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“Isso fica bem claro quando vemos que as apreensões, que costumavam ser, em sua maioria, nos estados atlânticos, onde estão os portos, passaram a se concentrar nas estradas e nos estados do oeste, que fazem fronteira com os países produtores.” Cinco estados estão nessa condição: Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.

Comparação das apreensões de cocaína pela Polícia Rodoviária Federal nos 12 meses antes e nos 12 meses depois do início da pandemia, em março de 2020. Quanto mais forte o tom de roxo, maior o aumento da quantidade apreendidadfd

Segundo o relatório, a mudança de estratégia foi percebida pela atividade policial. Aumentaram as apreensões de menos de 200 quilos de cocaína e diminuíram as apreensões de mais de 200 quilos, muito por causa da redução do tráfico em portos e do aumento das atividades em estradas, disse Andreuccetti.

De acordo com o Cocaine Insights 4, a quantidade de cocaína apreendida em estradas pela Polícia Rodoviária Federal aumentou 60% entre o início e o fim de 2020. O estudo aponta que essa tendência já vinha sendo observada antes de a pandemia começar e, portanto, não pode ter sido causada apenas pela covid-19. Mas é notório, segundo o documento, que essa tendência foi acelerada pelo fechamento das fronteiras e a consequente intensificação da fiscalização de portos e aeroportos.

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Essa tendência é ilustrada pelos dados de São Paulo e Paraná. Os estados abrigam os dois maiores portos do país, Santos e Paranaguá, respectivamente. Antes da pandemia, quase 80% da cocaína apreendida em portos se concentrava nesses dois locais, segundo o relatório — em 2018, Santos sozinho respondia por 74%. Em 2020, a fatia caiu para 58%, o que indica a diversificação da distribuição da droga.

Também houve diversificação de destinos, apontou Andreuccetti. Em 2018, a cocaína apreendida era direcionada para sete países. Em 2020, foram 20 destinos. Até abril do ano passado, já eram 21.

A maior parte das drogas tinha a Bélgica e a Holanda como destinos, seguido pela Espanha, passando pela África no meio do caminho. Depois do início da pandemia, disse Andreuccetti, já foi possível observar a criação de rotas para distribuição de drogas para países que não a recebiam do Brasil antes, como o Japão, Indonésia, China e Índia, além do Reino Unido.

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O relatório também detecta um aumento no uso de aviões de pequeno porte para transporte da droga. Entre outubro de 2018 e março de 2019, praticamente não foram registradas apreensões de cocaína em aviões. Em julho de 2019, houve apreensões de 1.500 quilos. Com a pandemia, essas quantidades foram aumentando até chegar a 2.500 quilos em julho de 2020 — ao mesmo tempo, a quantidade de cocaína apreendida em aeroportos “caiu significativamente”, conforme o relatório.

“O uso de aviões pequenos foi observado não só para trazer a cocaína ao Brasil mas também para movimentos internos para locais de armazenamento e consumo”, aponta o Cocaine Insights 4, relatório produzido em conjunto pela UNODC e pelo CdE.

Entrega até pelo correio

O próprio relatório, no entanto, afirma que a tendência de interiorização foi intensificada pela pandemia, mas parece ter arrefecido a partir de março de 2021. “O que vemos é que o mercado se adapta. Com a pandemia, houve uma quebra da cadeia, mas que logo foi retomada. Mas temos visto agora dados de consumo crescente na Europa, por exemplo”, contou Andreuccetti.

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O promotor de Justiça Arthur Lemos Jr. tem entendimento semelhante. “Se houve essa interiorização, hoje já voltou ao normal”, afirma.

“Os traficantes que estão aqui no Brasil estão, sim, vendendo a droga em outros países. Temos documentos idôneos, obtidos com pessoas envolvidas nisso, que demonstram que estamos vendendo drogas para outros países. Ela sai daqui, passa pela África e de lá segue”, disse. O promotor evitou dar informações precisas sobre as rotas para não revelar detalhes sobre investigações em andamento.

Lemos contou que ele e seus colegas do Grupo de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) passaram os últimos meses em reuniões com representantes de outros países, que vieram em busca de informações sobre o PCC, considerada a maior organização dedicada ao tráfico do país, com “sede” em São Paulo.

Segundo o promotor, representantes de Alemanha, Espanha, Portugal, Estados Unidos, Uruguai e Colômbia relataram que membros do PCC foram presos ou estão sendo monitorados em seus respectivos países. “Essa é uma realidade que não se pode negar”, afirmou.

O que a pandemia trouxe, segundo Lemos, foi a diversificação das formas de entrega das drogas. O promotor conta que já há casos concretos de empresas de logística e transportadoras que prestam serviços de entrega de drogas para organizações criminosas, e de maneira regular do ponto de vista da contratação, dado que não há identificação das mercadorias.

O promotor contou que teve reunião recente com representantes dos Correios, um dia antes de atender a Bloomberg Línea. Os serviços da estatal, segundo Lemos, estão sendo usados para enviar drogas para presídios e outras instituições de segurança. Como não existe obrigação de o remetente se identificar, os Correios acabam se transformando em entregadores de drogas.

“Isso já acontecia antes, conhecemos alguns casos, mas nunca dessa forma. Agora estamos com vários casos, especialmente na região de Campinas [cidade a 99 km de São Paulo]. A pessoa coloca a droga dentro de uma caixa e manda entregar em um presídio, por exemplo. E o entregador não tem como saber o que tem dentro do pacote”, contou Lemos.

O Ministério Público de São Paulo negocia com os Correios a edição de uma portaria que determine que toda encomenda enviada a instituições de segurança passe por um scanner (hoje isso é feito apenas por amostragem) e que recomende aos balconistas das agências que peçam a identificação a quem enviar pacotes a presídios. “É um trabalho preventivo”, disse Lemos. “Claro que os traficantes vão sempre encontrar outra forma, mas pelo menos criamos essa dificuldade.”

Lavanderia

Gabriel Andreucceti, do CdE, contou que, de 2017 para cá, as instituições federais de combate ao tráfico têm se dedicado mais a “desarticular financeiramente” as organizações criminosas.

Em São Paulo, no nível estadual, não é diferente. Segundo o levantamento do Gaeco do MP-SP, foram identificados, entre janeiro e abril deste ano, R$ 6,2 bilhões em esquemas de “fraudes estruturadas”, o que inclui lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.

“Não desconhecemos que em São Paulo e em outros lugares do Brasil há dinheiro proveniente do tráfico que compromete de certa forma nossa economia”, disse o promotor Arthur Lemos. Segundo ele, qualquer ramo de atividade em que circule dinheiro em espécie é um alvo em potencial para lavagem de dinheiro do tráfico.

Lemos citou estabelecimentos como postos de gasolina, hotéis, motéis, joalheria, igrejas, times de futebol e empresas de transporte como casos em que já foi comprovada a lavagem.

Ele afirmou ainda que, com a dinamização da economia nacional e a digitalização dos serviços financeiros, “ficou muito fácil enviar o dinheiro oriundo de crimes cometidos em São Paulo para outras regiões, como o setor hoteleiro do Nordeste ou de Balneário Camboriú, em Santa Catarina”.

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Pedro Canário

Repórter de Política da Bloomberg Línea no Brasil. Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero em 2009, tem ampla experiência com temas ligados a Direito e Justiça. Foi repórter, editor, correspondente em Brasília e chefe de redação do site Consultor Jurídico (ConJur) e repórter de Supremo Tribunal Federal do site O Antagonista.