Pode não ter sido uma boa decisão, mas delegar a decisão sobre o aborto para as legislaturas estaduais não é nada antidemocrático
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Bloomberg Opinion — Uma das tendências mais perturbadoras no discurso atual é o uso indevido do termo “antidemocrático”. A palavra se tornou uma espécie de insulto para tudo e é usada para criticar os opositores políticos e intelectuais. A prática não só é intelectualmente preguiçosa mas também ameaça distorcer o significado e obscurecer o valor da democracia.

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As vantagens da democracia são óbvias e merecem maior ênfase:

  • A democracia ajuda a aumentar as taxas de prosperidade e de crescimento econômico.
  • Os governos democráticos são mais propensos a proteger os direitos humanos e as liberdades civis básicas.
  • Como o filósofo Karl Popper enfatizou, a democracia ajuda as sociedades a escapar dos piores governantes ao tirá-los do cargo com o voto da maioria e, ao mesmo tempo, os controla com fiscalização e equilíbrio.

É claro que a democracia não é perfeita. Primeiro, muitas decisões democráticas individuais não são muito boas (no que diz respeito aos ideais científicos ou tecnocráticos, a maioria das decisões democráticas não é muito boa, mas eu diria que tecnocratas também não são completamente confiáveis). Em segundo lugar, há períodos em que alguns países podem ter melhores resultados como não democráticos, mesmo que a democracia seja melhor em média.

O excesso de comentários não contempla essas nuances. Por exemplo, o New York Times publicou recentemente um artigo de opinião com o título “Modi’s India Is Where Global Democracy Dies” (“A Índia de Modi é onde a democracia global morre”, em tradução livre). Muitas de suas críticas ao primeiro-ministro Narendra Modi são válidas – mas o regime não é antidemocrático. Modi foi eleito duas vezes por margens confortáveis, e ele é o favorito para ganhar outro mandato. Esse é um caso de uma democracia que faz escolhas erradas (como muitas vezes fazem).

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Podemos observar as críticas da Polônia quando esse regime limitou as capacidades de seu poder judiciário independente há vários anos. Isso foi um erro, pois prejudica o sistema de fiscalização e equilíbrio que ajuda a fortalecer a democracia. No entanto, a decisão não fazia parte de uma agenda “antidemocrática”, como alguns comentaristas disseram na época. Limitar o poder judiciário geralmente torna um governo mais democrático, como aconteceu na Polônia (lembrando que há eleições polonesas programadas para 2023; não vejo sinais de que elas serão canceladas).

O perigo é que as “coisas com as quais concordo” serão cada vez mais rotuladas como “democráticas”, ao passo que qualquer coisa de que uma pessoa não gostar será chamada de “antidemocrática”. Assim, a democracia passa a ser vista como uma forma de promulgar uma série de preferências pessoais em vez de um mecanismo impessoal benéfico (em grande parte) para a tomada de decisões coletivas.

Um exemplo no Ocidente (e mais controverso) está nos Estados Unidos. Muitos da esquerda política alegaram que a decisão da Suprema Corte de derrubar a decisão de Roe vs Wade foi “antidemocrática”. Tudo bem dizer que foi uma decisão ruim, mas na verdade ela coloca a lei do aborto nas mãos das legislaturas estaduais. Se marcianos estivessem visitando o país, eles simplesmente não veriam esse movimento como antidemocrático.

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Sim, o sistema de governo americano tem muitos elementos não democráticos (ou imperfeitamente democráticos) – a própria Suprema Corte, por exemplo, ou o Senado, que dá aos estados menos populosos uma influência maior. No entanto, essas mesmas descrições se aplicariam ao tribunal que aprovou Roe vs Wade, bem como ao tribunal que o anulou.

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Cabe um parênteses: meu ranço do termo “não democrático”, em oposição a “antidemocrático”, é diferente, mas está relacionado. Nem todos os aspectos de uma democracia podem ou devem ser democráticos – a nomeação de indivíduos a alguns cargos, por exemplo. Mas se o termo “não democrático” for usado como um insulto normativo, as pessoas podem começar a se perguntar se sua lealdade deve ser à democracia.

A decisão sobre o aborto também não deve ser chamada de antidemocrática se o que realmente se defende é um maior envolvimento do governo federal na política de aborto – uma visão defensável. Ninguém diz que o governo suíço é “antidemocrático” porque coloca tantas decisões (para o melhor ou para o pior) nas mãos dos cantões. E indicar que muitos governos estaduais dos EUA não são tão democráticos quanto gostaria não anula essa lógica.

Seria mais honesto e mais preciso simplesmente observar que o tribunal coloca a decisão nas mãos de governos estaduais (imperfeitamente) democráticos, e que você discorda das decisões desses governos.

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Considerar que “o que é certo” é o mesmo que “o que é democrático” pode acabar confundindo as pessoas sobre a popularidade de seus próprios pontos de vista. Se você atribui o fracasso de suas opiniões a forças “não democráticas” ou “antidemocráticas”, você pode concluir que o mundo precisa simplesmente de mais majoritarismo, mais referendos, mais votações.

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Essas conclusões podem ou não estar corretas. Mas elas devem ser julgadas empiricamente, em vez de seguir a terminologia idiossincrática das pessoas sobre o que entendem por “democracia” – e, por extensão, por “antidemocrática”.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

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Tyler Cowen é colunista da Bloomberg Opinion. É professor de economia na George Mason University e escreve para o blog Marginal Revolution. É coautor de “Talent: How to Identify Energizers, Creatives, and Winners Around the World.”

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