Estima-se que as receitas globais do setor ultrapassem US$ 200 bilhões nos próximos dois anos.
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Bloomberg — Os jogos eletrônicos foram uma das indústrias sortudas a crescer durante a pandemia de covid-19. Estima-se que as receitas globais do setor ultrapassem US$ 200 bilhões nos próximos dois anos.

Mas o sucesso financeiro desse segmento está gerando certa preocupação. No mês passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu formalmente o vício em videogames como uma doença, mas ainda há dúvidas sobre a prevalência do problema, principalmente entre os adultos.

Parmy Olson organizou um Twitter Spaces em 16 de março com Henrietta Bowden-Jones, médica e fundadora do Centro Nacional de Distúrbios de Jogos do Reino Unido. Elas se juntaram a Lisa Jarvis, colunista da Bloomberg Opinion, que cobre saúde e indústria farmacêutica. Abaixo está uma transcrição editada de sua conversa.

Parmy Olson: Henrietta, poderia nos dizer por que você iniciou uma clínica para distúrbios de jogos em 2019?

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Henrietta Bowden-Jones: A minha clínica estava indo muito bem e em 2019 foi replicada 14 vezes. Consegui criar esta clínica de jogos por causa das preocupações das pessoas em torno das “loot boxes” [caixas de recompensa, em tradução livre]. As pessoas queriam saber se os jovens que eram atraídos por essas caixas enquanto jogavam poderiam ter maior probabilidade de sofrer danos causados pelo jogo.

Parmy: Você deve estar vendo um grupo muito mais jovem agora.

Henrietta: Esses jogadores ainda moram na casa dos pais. Mas o que vejo nesta clínica não é de forma alguma uma representatividade de quem realmente está sofrendo com esse problema. Ainda estou perplexa pelo fato de não estar vendo jovens de 20, 30 anos. É preciso fazer a pergunta: “eles estão por aí e não sabem que existimos?” Isso é improvável. Então, aqueles que estão jogando compulsivamente não estão prontos para pedir ajuda ou há uma remissão espontânea que faz com que as pessoas parem e comecem a melhorar?

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Parmy: Há discordância sobre se o vício em jogos é real ou não. Você vê isso como seu próprio problema clínico ou o vício em jogos é uma manifestação de algum outro transtorno psiquiátrico subjacente?

Henrietta: Acho que ainda não há uma resposta clara. As pessoas me perguntam se a decisão de classificar o vício em jogos foi uma boa ideia ou não. Fiquei muito feliz que a decisão foi tomada, porque permitiu que pessoas como eu abrissem uma clínica. O NHS [Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido] nunca teria permitido que eu oferecesse tratamento às pessoas para algo que não fosse considerado um distúrbio.

Parmy: Lisa, há muito alarmismo sobre distúrbios de jogos?

Lisa Jarvis: Acho que pode haver um pouco demais de alarmismo. Todos nós já vimos as manchetes chamando os videogames de heroína digital ou culpando crimes violentos no vício em videogames. Esses tendem a ficar em nossos cérebros, especialmente quando você é pai e tenta avaliar quanto tempo deve permitir que seus filhos passem no Minecraft ou Roblox.

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Vale lembrar que o comportamento desordenado só se torna um problema para uma porcentagem muito pequena de pessoas que se envolvem em jogos. Acho que os estudos colocaram em 0,3% a 1% das pessoas que correm o risco de se tornarem dependentes.

Lembre-se que, para algumas pessoas, o componente social dos jogos pode ser muito útil, principalmente durante um período isolado como a pandemia. Há também alguma ciência que sugere que, quando você não usa jogos em excesso, pode ser benéfico – melhorando a capacidade de atenção, ajudando nas relações espaciais e na resolução de problemas.

Algumas empresas do mundo da biotecnologia estão realmente usando jogos para tentar aproveitar os efeitos positivos no cérebro. A FDA [agência reguladora dos Estados Unidos, como a Anvisa, no Brasil] aprovou um videogame que ajuda crianças com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) a melhorar sua atenção como um medicamento digital.

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Portanto, há potencial para danos, mas não acho que devemos supor que todos os jogos sejam ruins, o que pode facilmente se tornar a narrativa.

Parmy: Henrietta, você pode nos contar um pouco sobre suas descobertas nesses últimos anos de abertura das clínicas? Alguma coisa te surpreendeu?

Henrietta: Ainda não temos uma compreensão clara da prevalência, mas é improvável que seja extremamente alta – certamente não é uma epidemia. Lisa mencionou 0,3% a 1%, mas há taxas de prevalência muito mais altas em várias pesquisas, principalmente em países asiáticos. Uma das primeiras coisas que precisamos fazer aqui no Reino Unido é ter um estudo muito completo de prevalência de distúrbios do jogo, para entender quem está sofrendo dessa doença.

Para a maioria das pessoas, o jogo é divertido. Eu também pegaria no lado social. Vários de nossos pacientes estavam com muito medo de serem enviados para tratamento em nossa clínica porque temiam que nós os cortássemos de suas redes de apoio.

Criamos um programa que permite algumas horas por dia para que as pessoas permaneçam conectadas, enquanto, ao mesmo tempo, melhoram o lado das atividades fora dos jogos – desenvolvendo habilidades e devolvendo essas pessoas aos seus clubes e esportes, dado que muitas dessas crianças eram muito competitivas na vida real antes de traduzir tudo em jogos.

As pessoas que vimos com distúrbios de jogos estão jogando sem nenhum controle. Em 2020, nossos pacientes jogavam em média de 12 a 18 horas por dia. Você ouve falar de pacientes que se recusam a ir à escola. Há um elemento aqui do jogo substituindo algo para essas crianças.

Um terço de nossos pacientes disse que pararam de cuidar de si mesmos, seja trocando de roupa ou tomando banho. Metade de nossos pacientes relatou reações violentas quando os pais tentam remover consoles ou telefones.

Parmy: É difícil para os pais descobrirem como moderar a quantidade de jogos que seus filhos podem ser expostos. Lisa, que tipos de ferramentas estão disponíveis?

Lisa: Eu penso nisso como mãe o tempo todo. Quando se trata de controle dos pais, diferentes consoles de jogos têm maneiras de permitir que você defina limites diretamente no dispositivo ou no telefone. Conheço pais que usam um aplicativo que desliga o Wi-Fi em um determinado horário da noite, para que as crianças sejam forçadas a fazer uma pausa cerebral nos jogos e também nas mídias sociais.

Uma coisa é começar cedo tentando definir limites em torno do uso do tempo de tela em geral. A Academia Americana de Pediatria tem algumas diretrizes claras: certifique-se de definir um limite de tempo baseado na idade da criança; garantir que as crianças joguem depois de concluir outras tarefas, como lição de casa ou tarefas domésticas; deixando bem claro o que acontece quando uma criança quebra uma regra sobre jogos e certificando-se de que o conteúdo dos jogos é apropriado.

O mais difícil, eu acho, é ser consistente com a aplicação dessas regras para evitar que as coisas saiam do controle. Muitas de nossas regras saíram pela janela durante a pandemia, quando nossos filhos estavam em casa durante a escola remota.

Henrietta: Eu tenho dois filhos, que são um pouco mais velhos agora, mas eu “cortava” os jogar depois duas horas e colocava seus Nintendos no forno, que era alto, onde as crianças não podiam alcançar. Claro, às vezes eu esquecia e ligava o forno e esses dois consoles ficavam cada vez mais quentes.

O distúrbio do jogo é raro, mas grave quando você o encontra. Já tivemos pacientes que abriram a janela e ameaçaram pular, sair de casa no meio da noite para andar quilômetros para ir a algum lugar onde pudessem encontrar internet, além de atacar os pais e arrombar portas para tentar chegar ao lugar onde os dispositivos estavam trancados.

São inventivos e assíduos na busca dessas atividades de uma forma muito difícil de imaginar em crianças tão pequenas. Quando os vemos, há uma exasperação nos pais e uma desesperança, às vezes medo também. Um tema recorrente é que, quando as crianças ficam com raiva, elas descontam no irmão ou na irmã ou no cachorro da família.

As pessoas que tratamos apresentam má regulação do tédio, humor deprimido com ansiedade social e baixa auto-estima. Se você combinar isso com a ideia do escapismo que os jogos proporcionam e, de fato, as recompensas em um momento em que as escolas estavam fechadas, você vê como alguém poderia facilmente entrar mais nos jogos.

Parmy: Uma lei que entrou em vigor no Reino Unido há alguns meses forçou empresas de redes sociais, como TikTok e Instagram, a controlarem a maneira como enviavam notificações para usuários mais jovens de seus aplicativos. O que a indústria de videogames pode fazer?

Lisa: Alguns desses jogos pretendem ser educativos. Acho que ajudaria se houvesse mais pesquisas sobre se esses tipos de jogos eletrônicos realmente têm benefícios.

Henrietta: Eu concordo. A verificação da idade também é muito importante e a tecnologia deve ajudar nossos jovens jogadores, porque sabemos que a impulsividade pode ser um problema para alguns de nossos pacientes. Tornar muito fácil comprar coisas é um problema.

Há muito tempo defendo um conselho independente que possa receber preocupações dos pais sobre jogos específicos e analisar os danos. Costumamos falar sobre um índice de danos e como seria útil para os pais entenderem a complexidade de jogos específicos ou a capacidade de gastar dinheiro. Coisas assim podem realmente levá-los a decidir sobre um jogo em vez de outro.

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