Refugiados não brancos que fogem da Ucrânia sofrem preconceito racial

Discriminação que alguns enfrentam destaca como a Europa tem tratado pessoas de diferentes etnias que escaparam de conflitos

Migrantes atravessam a Sérvia em direção à fronteira com a Hungria em 2015
10 de Março, 2022 | 01:07 PM

Bloomberg — A jornada da guerra leva dias e semanas. E enquanto a maioria das pessoas que fogem da Ucrânia são recebidas de braços abertos e com compaixão, Nawa, Kathy e Solomon não tiveram esse tipo de tratamento nessa árdua experiência. Como outras pessoas negras que buscam segurança em países vizinhos, eles foram repetidamente empurrados para trás, forçados a sair de trens de evacuação e ameaçados de violência quando tentaram embarcar.

“Eles estavam tentando mostrar que há discriminação entre as pessoas e nós ficamos por último”, disse Solomon, um serralheiro de 35 anos que fugiu da cidade de Kharkiv.

Nawa e Kathy, estudantes do Zâmbia na casa dos 20 anos, e Solomon, que é do Quênia, deixaram a Ucrânia nos dias que se seguiram à invasão russa de 24 de fevereiro e se encontraram em Varsóvia, onde, através das mídias sociais, encontraram jovens voluntários que lhes ofereceram uma carona de carro para sair da Polônia. E agora enquanto decidem seu próximo paradeiro, não está claro se encontrarão refúgio na Europa.

A incursão russa provocou a crise de refugiados que mais cresce desde a Segunda Guerra Mundial, forçando mais de dois milhões de pessoas a deixar a Ucrânia em pouco menos de duas semanas. Na quarta-feira, 109.000 deles não eram ucranianos, ou cidadãos de países terceiros, incluindo tunisianos, ganenses e libaneses, de acordo com a Organização Internacional para as Migrações.

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Em resposta à crise humanitária que se desenrola, a União Europeia aprovou uma medida sem precedentes que permite que os ucranianos permaneçam por até três anos nos estados membros. Mas cabe aos países decidir se oferecem a mesma proteção aos não ucranianos que tinham residência legal no país. A discriminação que alguns enfrentam destaca como a Europa tem tratado pessoas de diferentes etnias que escaparam de conflitos.

Durante a última grande crise de refugiados da região em 2015, mais de um milhão de pessoas pediram asilo no continente, a maioria fugindo de conflitos no Iraque, Afeganistão e Síria. Muitos foram recebidos com hostilidade em alguns países, já que políticos de extrema direita e comentaristas da mídia espalharam o sentimento anti-imigrante e o medo do terrorismo islâmico com discursos de ódio. E todos os anos, desde então, dezenas de pessoas que tentam cruzar o mar Mediterrâneo do norte da África para a Europa em pequenos barcos são abandonadas à própria sorte sem muita chance de sobrevivência.

A Polônia e a Hungria, dois dos países mais hostis nos eventos ocorridos há sete anos, estão na linha de frente da crise atual.

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A Hungria, que até construiu uma cerca para manter as pessoas afastadas, estendeu a mão agora, já que a maioria das mulheres com filhos atravessa sua fronteira com a Ucrânia. O primeiro-ministro, Viktor Orban, explicou a mudança na semana passada, dizendo a repórteres que “somos capazes de diferenciar entre quem é migrante e quem é refugiado. Os migrantes são impedidos de entrar. Os refugiados podem obter toda a ajuda.”

A estudante de medicina Kathy foi repetidamente empurrada para trás enquanto tentava embarcar em um trem de evacuação lotado de Kiev com Nawa. “Tentamos entrar com as mulheres primeiro, elas nos empurraram para o lado”, disse ela, explicando que na confusão as duas amigas foram separados antes de se encontrarem na próxima estação.

Por sua vez, Nawa ficou apavorada por ser forçada a sair do trem em que finalmente conseguiu embarcar. “Na sua cabeça você pensa ‘OK, eu sou negra. Eles não têm nenhuma razão para me deixar entrar. Já vimos isso acontecer outras vezes.”

Essas situações são sempre confusas e no êxodo frenético para fugir de uma guerra que se torna cada vez mais brutal, pessoas de todas as etnias vêm enfrentando desafios.

Desesperados para partir, alguns não-ucranianos forçaram a própria entrada nos trens. E nem todos foram maltratados, mas houve incidentes suficientes para que o diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações - OIM, Antonio Vitorino, levantasse a questão. Em um comunicado na semana passada, ele disse estar “alarmado com relatos confiáveis verificados de discriminação, violência e xenofobia contra cidadãos de países terceiros”.

“Condeno tais atos e peço aos Estados que investiguem esta questão e a resolvam imediatamente. Os Estados vizinhos precisam garantir que todos aqueles que fogem da Ucrânia tenham acesso irrestrito ao território, independentemente do status e em conformidade com o Direito Internacional.”

António Vitorino @IOMchief

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Os governos tomaram nota.

O governo ucraniano criou uma linha direta de emergência para “estudantes africanos, asiáticos e outros”. E a França disse que os africanos na Ucrânia cujos cursos foram interrompidos pelo conflito podem se inscrever para continuar seus estudos em uma universidade francesa.

Países como a Índia se organizaram para levar seus cidadãos – muitos dos quais são estudantes universitários – de volta para casa.

Por enquanto, Kathy, Nawa e Solomon, como muitos outros, estão à mercê da bondade de estranhos estimulados a agir pelos relatos de maus-tratos para fazer viagens de 18 horas pela Europa para trazê-los à segurança.

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Grupos comunitários viram a “necessidade de ajudar nossos irmãos na fronteira que estão morrendo de frio, estão sendo negligenciados”, disse Jessica Korp, organizadora da Rede Tubman, que coordena grupos de justiça racial na Alemanha.

“O duplo padrão de ajudar corpos brancos versus corpos pretos e pardos estava extremo”, disse ela. “Então, alguns organizadores tiveram que tomar a decisão executiva de dizer que não os deixaremos para trás.”

– Esta notícia foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.

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