Opinión - Bloomberg

Diante da guerra, nem as criptomoedas podem ficar neutras

Com os mercados em colapso e as sanções se acumulando contra a Rússia, os tokens são vistos como alternativa a formas de pagamento vulneráveis

Como aqueles pedaços do Muro de Berlim, um CryptoPunk hoje pode ter valor apenas porque foi doado durante uma guerra e pode ser vendido em troca de dinheiro
Tempo de leitura: 4 minutos

Bloomberg Opinion — Quando a Rússia começou sua invasão na Ucrânia, os fãs de criptomoedas pareciam estar presos em uma fantasia decadente. Um lote de NFTs CryptoPunk (colecionáveis de blockchain) tinha acabado de ser retirado do leilão na Sotheby’s, em meio a um entusiasmo cada vez menor e um selloff mais amplo do mercado. O vendedor twittou memes de Drake para zombar do evento cancelado, mas considerando a campanha de marketing chamativa, foi um momento que trouxe um senso de humildade.

Uma semana depois, outra CryptoPunk está em uma conta do governo da Ucrânia como parte de uma campanha de arrecadação de US$ 51 milhões. Kiev está usando seu conhecimento de tecnologia para atrair todos os tipos de ativos que pode vender para financiar o esforço de guerra. Como a ovelha da Nova Zelândia doada na Primeira Guerra Mundial, ou pedaços do Muro de Berlim vendidos como memorabilia por uma boa causa, os NFTs estão encontrando um novo uso em conflitos além do status social e da riqueza virtual.

Os fãs de cripto não tardaram em aproveitar as implicações de seu ativo favorito como um “salva-vidas” na guerra, após anos de publicidade negativa sobre especulação, fluxos de dinheiro ilícitos e atividades criminosas. Com os mercados financeiros em colapso e as sanções se acumulando na Rússia, tokens digitais e obras de arte estão sendo procurados como uma alternativa a formas de pagamento vulneráveis. O trading de Bitcoin em rublos e hryvnia está aumentando.

Pode ser que estes sejam os canais alternativos de guerra no futuro. As criptomoedas tradicionalmente não costumam discriminar usuários, dentre eles organizações ligadas à Ucrânia que foram bloqueadas por causa de laços militares ou roubadas para financiar programas de mísseis da Coreia do Norte.

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Mas há uma dose maior de realidade aqui para a narrativa utópica das criptomoedas, de ser um tipo de dinheiro “sem fronteiras” e “sem estado” enquanto bombas caem na porta da Europa. Em um mundo onde até a Suíça está abandonando a neutralidade histórica, tem sido difícil para as criptomoedas escaparem dos fatos geopolíticos.

As criptomoedas estão se tornando menos “meta”. Vitalik Buterin, cofundador da blockchain Ethereum, twittou em apoio à arrecadação de fundos para a Ucrânia: “O Ethereum é neutro, mas eu não sou”. Enquanto uma proprietária de CryptoPunk há alguns meses disse à Wired que sentia que estava vivendo no metaverso e o mundo físico a estava desacelerando, hoje a exchange Uniswap tem um ponto de doação na Ucrânia e Kiev está dizendo à Meta Platforms (FB), controladora do Facebook, que a empresa deve garantir que “não haja lugar para criminosos de guerra no Metaverso”.

Assim como os fãs de criptomoedas estão se sentindo forçados a escolher um lado, as exchanges de criptomoedas também estão sendo instadas a enfrentar seu passado livre e esparsamente regulamentado. Por um lado, o presidente-executivo da Kraken, Jesse Powell, insiste que cripto é uma questão de riscar “linhas arbitrárias em mapas” sem sentido, mas, por outro, os governos estão estimulando as exchanges a garantir que não estejam sendo usadas como um meio de desviar das sanções. Os ministros das Finanças do Grupo dos Sete e da União Europeia estão trabalhando em um kit de ferramentas de sanções “máximas” que inclui criptoativos, enquanto os reguladores financeiros dos Estados Unidos estão investigando se as ofertas de NFT violam suas regras.

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Talvez da mesma forma que a covid-19 viu o mercado de criptomoedas disparar, mas também estimulou os governos a trazê-lo para a luz, esse conflito provavelmente intensificará os esforços regulatórios. A narrativa de que os benefícios do sigilo ou do anonimato (tecnicamente pseudo-anonimato) superam os custos não convence mais - coincidentemente, é a mesma narrativa que foi usada por paraísos fiscais, cuja senda foi muito mais sinuosa, já que o mundo calcula o custo do vazamento de dinheiro para eles. Mesmo que as grandes exchanges se oponham à ideia de barrar todos os usuários russos, elas têm se esforçado para demonstrar que estão em conformidade com as sanções. A empresa de análise de blockchain Chainalysis diz que driblar as sanções sem ser detectado seria “difícil”.

Pessoas como Mike Novogratz preveem que sanções e crises geopolíticas acabarão por impulsionar as criptomoedas. À medida que o capital é espremido de outros ativos, mais capital pode encontrar um lar entre as criptomoedas – e mesmo com bombas caindo, o setor está tendo poucos problemas para levantar fundos.

Mas a história ainda está sendo escrita. Não está claro se um mercado de criptomoedas do pós-guerra será capaz de espalhar memes “Hodl Bitcoin” com o mesmo nível de frenesi típico de ficção científica. Um expatriado russo nos EUA disse à Bloomberg News que, mesmo que as plataformas de criptomoeda oferecessem alternativas, o dinheiro ainda era o rei em tempos de crise: “Você não pode pagar tudo com criptomoeda e, de qualquer maneira, precisa sacar dinheiro com cartão de débito ou trocar por dinheiro .”

Talvez quando a paz voltar a reinar, os cripto-evangelistas terão uma nova história para contar. Mas, por enquanto, isso parece uma dose de realidade após anos de decadência. Como aqueles pedaços do Muro de Berlim, um CryptoPunk hoje pode ter valor apenas porque foi doado durante uma guerra e pode ser vendido em troca de dinheiro. Os fins às vezes justificam os memes.

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Lionel Laurent é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre a França e a União Europeia. Já trabalhou para a Reuters e a Forbes.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

– Esta coluna foi traduzida por Marcelle Castro, Localization Specialist da Bloomberg Línea.

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