Por vezes, a pessoa que fica em casa com os filhos acaba recebendo menos, o que aumenta a desigualdade entre o casal.
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Bloomberg Opinion — Confira a entrevista completa com a historiadora econômica Claudia Goldin, professora de Economia da Universidade de Harvard e autora do livro Career & Family: Women’s Century-Long Journey toward Equity (”Carreira e Família: a jornada de séculos da mulher rumo à igualdade”, em tradução livre).

Bloomberg Opinion: Você é uma historiadora e importante economista do trabalho, conhecida por seu trabalho com Larry Katz sobre educação e desigualdade. Seu novo livro, que resume várias décadas de pesquisas feitas por você e outros economistas, é chamado Women’s Century-Long Journey toward Equity. Como você define carreira e família?

Claudia Goldin: Uma carreira é uma corrida. É qualquer cargo que dá satisfação e identidade e geralmente proporciona ganhos crescentes com a senioridade. Família significa ter um filho.

O que a pesquisa traz sobre mulheres, carreira e família?

Que não é uma resposta simples do tipo “consertar mulheres, consertar homens, deixar que o governo intervenha”. O problema é principalmente – mas não inteiramente – que criar filhos leva tempo e crescer na carreira também leva tempo, e tudo isso ocorre ao mesmo tempo.

Você pode nos dar um exemplo de como isso funciona nos mercados de trabalho?

O problema é o custo da flexibilidade. Se uma pessoa quisesse ter um emprego que possibilitasse algum tempo em casa, a questão é: quanto custaria? Não estamos falando apenas de flexibilidade, mas sim do custo da flexibilidade. Se o custo da flexibilidade for baixo, então os dois lados do mesmo problema – igualdade entre o casal e igualdade de gênero – convergem. O indivíduo que ficará em casa não perderá muito em termos de renda.

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Você conta histórias nas quais um casal de profissionais começou basicamente com os mesmos empregos e os mesmos salários. Em algum momento, eles têm filhos e os dois continuam com suas carreiras. Mas um deles aceita um trabalho “ganancioso” que paga mais, e o outro aceita o emprego mais flexível, que ainda é em tempo integral, mas paga menos. Primeiramente, você poderia explicar o que significa um trabalho ganancioso?

Um trabalho ganancioso paga mais quando o trabalho é realizado quando o gerente gostaria que fosse feito. Isso pode resultar em horas extras, mas não é padrão. Pode ser trabalhar à noite, no fim de semana, nas férias, fazer atividades urgentes...

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Certo. Pensando no exemplo do casal, um deles aceita o emprego ganancioso e, ao longo do tempo, a renda do casal diverge significativamente. Teoricamente, parece um fracasso ou uma situação de desigualdade, mas também pode ser uma solução.

A situação infeliz é que eles podem ter desejado uma vida de igualdade. E então o emprego ganancioso simplesmente significa que vai custar muito mais para o casal ter igualdade na relação. Se eles têm filhos, alguém precisa ficar em casa. E se o emprego é excepcionalmente ganancioso, ficar de plantão no escritório paga muito mais. Ambos poderiam aceitar um emprego que lhes permitisse ficar de plantão em casa, mas isso poderia causar um prejuízo de US$ 50 mil por ano. Eles podem decidir que uma relação de igualdade vale US$ 5 mil, talvez US$ 10 mil, mas não US$ 50 mil.

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Seu livro traça como as mulheres lutaram com essas escolhas nos últimos 100 anos. Você conta a história de mulheres com ensino superior na força de trabalho como uma série de grupos – gerações ou coortes. Essa é a “jornada que já dura um século”, que você deixa clara no subtítulo (century-long journey). Você poderia nos falar sobre esses grupos?

O primeiro grupo é composto por mulheres nascidas antes de 1900. É um grupo que se formou na faculdade nas duas primeiras décadas do século XX. Em geral, elas se casaram – e muitas tiveram filhos – ou não se casaram, não tiveram filhos e tiveram um trabalho geralmente gratificante. Eu as vejo como um grupo de mulheres com família ou carreira. De todo esse grupo, cerca de 50% nunca teve filhos. O motivo desse percentual é que uma grande parte nunca se casou.

Eu geralmente pulo dessa geração para o Grupo Três, que são as mães dos baby boomers. Esse grupo nasceu entre a década de 1920 até o início da década de 1940 (logo após o Grupo Dois, de transição, que começa com índices de casamento e fertilidade muito baixos, assim como o Grupo Um, e termina com índices mais altos de casamento e fertilidade, como o Grupo Três). No Grupo Três, as taxas de casamento são muito altas. Mulheres com ensino superior começam a parecer cada vez mais como o resto das pessoas. São as mulheres do Grupo Três que disseram “família primeiro, depois emprego”.

Essa foi a geração de mulheres que Betty Friedan descreveu em A Mística Feminina, publicado em 1963. Onde ela errou?

Ela queria retratar as mães dos baby boomers, com ensino superior, como se estivessem cometendo grandes erros. Elas eram atrasadas, retrógradas, não eram tão boas quanto o grupo anterior. Friedan disse repetidamente que elas estavam abandonando a faculdade em massa, que não obtinham diplomas de ensino superior como o grupo anterior. Na verdade, isso tudo está errado.

Acontece que a parcela que fez pós-graduação foi significativamente maior do que no grupo anterior. A parte que abandonou os estudos não foi tão grande como afirma Friedan. Não significa que elas não eram felizes. Elas ficaram em casa com os filhos por um tempo, mas elas tinham o que eu chamo de “passe livre”. Elas tinham ensino superior. Eles expressaram descontentamento e frustração com o mundo do trabalho, que não as tratava muito bem. E elas estavam certas – mas a geração anterior provavelmente passou por momentos piores a esse respeito. Para mim, o grande erro de Friedan foi afirmar que essa foi a geração que realmente avançou as mulheres.

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Você ressalta que, quando estavam na faculdade, a maioria delas já tinha uma carreira. Magistério, enfermagem. Esses podem até ter sido empregos tradicionalmente femininos, mas elas pensavam no futuro, com a ideia de que trabalhariam durante uma parte significativa de suas vidas.

Sim. Então, houve uma mudança cataclísmica entre os Grupos Três e Quatro. Antes de 1950, era normal para mulheres com ensino superior se casarem um ano ou dois após a formatura. Mesmo as que se formaram em direito, em medicina, em MBAs – você se casava assim que se formava. Mas começando com as mulheres nascidas no início dos anos 1950, a idade do primeiro casamento começa a aumentar de forma muito acentuada. Isso tem relação com a pílula anticoncepcional.

No Grupo Quatro – do qual faço parte – o lema foi “carreira e depois família”. Elas presumiram que, se consolidassem a carreira primeiro, então seria muito fácil ter a família – basta olhar para os outros, como se reproduzem como coelhos, é simples – porém não é. No livro, falo sobre um famoso pôster que ilustra uma mulher chorando e dizendo “esqueci de ter filhos!”. Reconhecendo isso, o Grupo Cinco – nascido a partir de meados da década de 1950 e que se formou no ensino superior em algum ponto a partir do final da década de 1970 – diz que sua aspiração é “ter ambos. Vamos ter carreira e família, não um ou outro”.

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Como o comportamento do Grupo Cinco difere do Grupo Quatro?

Poderíamos pensar que elas passariam a ter filhos antes, mas não foi o que aconteceu. Na verdade, elas o fizeram ligeiramente mais tarde. Mas uma grande parte – calculo que cerca de 50% – da criação tardia de filhos nesse grupo se deu devido à tecnologia de reprodução assistida. A mudança tecnológica e as ordens governamentais em relação ao seguro saúde permitiram isso.

Qual foi a importância das mudanças tecnológicas na história geral?

Acredito que as mudanças tecnológicas foram incrivelmente importantes. Para mim, as mais importantes para a igualdade de gênero foram as que nos levaram do trabalho braçal para o trabalho intelectual – foi muita sorte termos nascido em um século com eletricidade e maquinário. As próximas mudanças, nas quais não pensamos com frequência, são as que tornaram nossas vidas mais saudáveis, seguras, limpas e produtivas, como a disponibilização de água limpa e tratada, adequada para consumo. Existem também as mudanças tecnológicas que permitiram às mulheres controlar sua fertilidade, o que tornou o parto mais seguro.

O demógrafo Lyman Stone argumenta que os norte-americanos estão tendo menos filhos do que dizem planejar e desejar e que, como resultado, as baixas taxas de fertilidade são um problema não apenas no sentido macroeconômico, mas também no sentido individual das famílias. Qual é a sua opinião?

Primeiramente, durante a maior parte da história humana, o contrário era verdadeiro – e isso é muito pior. Em segundo lugar, muitos sociólogos e demógrafos tomam como base um conjunto de respostas dadas em pesquisas como a National Longitudinal Survey of Youth, realizada pelo Departamento de Trabalho dos EUA, na qual jovens de 18, 19 e 20 anos respondem à pergunta “quantos filhos você quer ter?”. Elas observam quantos filhos as outras pessoas têm. E quase todas respondem com o número médio. Esse é um viés importante.

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Outro viés importante é que as pessoas revisam suas respostas. Então, se alguém inicialmente dissesse o número médio – que na época era três – e, ao chegar aos 28 anos, ainda não tivesse filhos, a resposta seria revisada e reduzida para um. Portanto, não tenho certeza do que significa dizer que as pessoas estão tendo menos filhos do que desejam, porque, em geral, quando chegam aos 40 anos, o número de filhos que tiveram é o número que dizem desejar. Na comparação com o que as pessoas disseram quanto tinham 18 anos, a média parece ter diminuído.

Mas existe aquele pôster com os dizeres “esqueci de ter filhos”.

Certo. O Grupo Quatro – os baby boomers – provavelmente teve menos filhos que o desejado. Mas o percentual de mulheres com pós-graduação que tiveram pelo menos um filho aumentou muito entre o Grupo Quatro e o Grupo Cinco. Acredito que as questões mais interessantes estão relacionadas a países como Japão, Coreia, Itália, Espanha, Portugal, Grécia e todos os outros países com taxas de fertilidade total que não estão apenas abaixo de 2,1 – a taxa de reposição – mas abaixo de 1,5. Quantos teríamos pensado que alguns dos países com as taxas de fertilidade mais baixas são países de religião católica e ortodoxa?

Se alguns empregos são gananciosos, qual é a solução? Você disse que não é uma resposta do tipo “consertar mulheres, consertar homens, deixar que o governo intervenha”. O que você recomenda, seja para gerentes, legisladores ou homens e mulheres que estão planejando suas vidas?

Boicote se for preciso. O sistema econômico pode funcionar. Mas para as mulheres, acredito que a resposta seja achar um parceiro – não importa o sexo – que queira o mesmo. É assim que se faz. Meu livro traz um alerta: não há soluções rápidas para isso, assim como não há soluções rápidas para o Covid, para o câncer, para o meio ambiente. Esses problemas não seriam importantes e difíceis se resolvê-los fosse fácil. E há uma enorme arrogância por parte dos indivíduos que de alguma forma acreditam que existe uma política para tudo e que tudo pode ser consertado da noite para o dia num passe de mágica. É muito difícil resolver esses problemas.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Virginia Postrel é colunista da Bloomberg Opinion. Ela é pesquisadora visitante no Smith Institute for Political Economy and Philosophy da Chapman University e autora de The Fabric of Civilization: How Textiles Made the World.

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