Bloomberg Línea — Os primeiros projetos de carros, em meados do século XIX, eram elétricos. Com o avanço e o lobby do petróleo, movimento liderado pelo magnata norte-americano John D. Rockefeller, a indústria automotiva se voltou para a produção de veículos a combustão.
Periodicamente, as montadoras buscam novas tecnologias para atrair o consumidor, mas só depois de cerca de 100 anos da invenção dos primeiros automóveis, o carro elétrico voltou à prancheta dos engenheiros e entrou de vez na linha de produção da indústria.
Agora, a longevidade das empresas do setor não depende somente de novos veículos mas de outros modelos de negócios, de acordo com um estudo global da KPMG com executivos C-level do setor ao qual a Bloomberg Línea teve acesso.
“O modelo de negócio vai mudar, não só os produtos. Isso inclui um ecossistema muito mais ‘fora da caixa’, envolvendo a reestruturação da cadeia de fornecedores para as empresas operarem de forma mais eficiente”, afirmou Ricardo Roa, sócio da KPMG, em entrevista à Bloomberg Línea.
A 25ª edição do “Global Automotive Executive Survey - GAES” incluiu em sua metodologia entrevistas com cerca de 775 executivos C-level do setor automotivo – incluindo CEOs de montadoras – em 22 países da Ásia, da Europa e das Américas, nos meses de abril e maio deste ano.
Segundo o estudo, 36% dos executivos veem uma transformação total do setor automotivo globalmente nos próximos três anos. No entanto, no recorte Brasil, essa fatia corresponde a apenas 17%.
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Roa explicou que, no período de entrevistas dessa edição, o governo brasileiro tinha acabado de anunciar a regulamentação da nova política industrial do setor automotivo, o Programa “Mover”, que deve permanecer em vigor até 2029.
“Todas as discussões do setor, no país, giram em torno da mudança da matriz energética rumo à eletrificação. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, aqui não estamos tratando ainda de veículo autônomo”, disse o especialista.
“Isso significa que dificilmente veremos grandes transformações no mercado doméstico nos próximos anos.”
A maioria dos executivos (87%) do setor no Brasil e no mundo (86%) disse na pesquisa que está investindo “fortemente” em inteligência artificial (IA) e tecnologias emergentes.
“A pergunta era direcionada para quem usa IA no seu core business, voltada à automação do sistema produtivo, da operação em si. O objetivo é descobrir como os executivos veem essa adaptação”, disse Roa.
Ele lembrou que, desde o ano passado, montadoras e empresas da cadeia de fornecedores no Brasil anunciaram um investimento total próximo de R$ 180 bilhões até 2032, concentrados na transformação do portfólio de projetos, o que está basicamente atrelado a novas tecnologias e sistemas de propulsão.
“Muito do foco vai estar voltado para a área de produto, o que inclui itens como pesquisa e desenvolvimento, mão-de-obra e prestação de serviço, entre outros. Uma parcela importante será destinada à IA.”
Novos modelos de negócios
Segundo o sócio da KPMG, novas marcas devem surgir no mercado global nos próximos anos, com produtos que vão além de veículos.
“Se as montadoras tradicionais não se moldarem aos novos tempos e estabelecerem parcerias para mudar o modelo de negócio, estas empresas vão enfrentar problemas graves. Estamos vivendo uma das maiores disrupções da história do setor.”
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O relatório destacou que 73% dos entrevistados acreditam que novos entrantes irão substituir as montadoras tradicionais até 2030. No entanto as empresas podem recuperar o domínio do setor ao apostar em estratégias de inovação.
“A indústria automotiva está em um ponto de inflexão e poucas empresas estão preparadas. A transformação deixou de ser opcional”, disse Roa.
As parcerias, em sua visão, não se restringem a startups.
Podem acontecer com grandes empresas de tecnologia para desenvolvimento de níveis diferentes de automação, bem como outras montadoras para ganhar escala em diferentes regiões, como a gigante Stellantis fez com a chinesa Leapmotor e a Renault estabeleceu com a Geely.
Uma maior verticalização das operações também está no radar.
Quando questionados sobre a importância das alianças para as empresas brasileiras, 90% dos entrevistados disseram que as parcerias estratégicas já contribuíram ou serão importantes para o crescimento dos negócios.
Na avaliação de Roa, nos próximos anos, os novos projetos das empresas não se restringirão apenas a produtos mas também vão envolver soluções de software embarcado, serviços embutidos, locação, car sharing (compartilhamento) e todo tipo de serviço de mobilidade.
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Para tanto, o planejamento financeiro é primordial.
Roa afirmou que, se por um lado, o programa Mover foi formulado para estimular a inovação, algumas questões específicas ainda impactam negativamente a indústria automotiva no Brasil, como os custos tributários e trabalhistas, bem como a taxa de juros e o câmbio.
“A forte volatilidade do dólar atrapalha muito os custos. Quase toda a indústria automotiva no Brasil é dolarizada, o que causa um impacto relevante na aquisição de partes e peças que têm custo em moeda americana.”
Financiamento
Diante da necessidade de reformas estruturais na economia, alguns incentivos pontuais poderiam impulsionar a cadeia, segundo o estudo.
Atualmente, no Brasil, empresas de todos os setores industriais, incluindo o automotivo, devem contar com mais de R$ 12 bilhões em linhas de crédito do governo federal para investir em tecnologias da “indústria 4.0”, como Internet das Coisas (IoT), IA, robótica e nuvem.
A linha “Crédito Indústria 4.0”, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), é voltada para empresas de diferentes portes.
Para a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o financiamento é importante especialmente diante do desafio das novas tarifas ao redor do mundo e do rearranjo das cadeias globais.
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Na visão do sócio da KPMG, as tarifas da administração Donald Trump levam cada vez mais diferentes empresas a buscar “localizar” a cadeia de suprimentos.
Com os riscos de uma nova disrupção da cadeia de semicondutores, item vital para a indústria automotiva, governos e corporações têm buscado remodelar a cadeia de suprimentos.
“Enxergamos uma mudança robusta para reestruturar toda a cadeia, mas isso não é uma tarefa fácil. Não vemos uma mudança, como o nearshoring, tão rapidamente", disse Roa.
Nacionalizar [uma linha de produção] é ter um payback alto e rápido. Por essa razão muitas empresas acabam aproveitando regimes como o ex-tarifário para importar e tentar equalizar custos”, acrescentou.
De acordo com o estudo da KPMG, 73% dos executivos entrevistados no Brasil apontaram que estão reestruturando ativamente as cadeias de suprimentos, com a priorização de modelos regionais ou de produção local para consumo local.
“Conflitos geopolíticos, mudanças nos ambientes regulatórios, vulnerabilidades nas cadeias de suprimentos e avanços tecnológicos acelerados estão criando um mercado automotivo imprevisível e fragmentado”, disse Roa.
Em meio a esses desafios, ele ressaltou que o consumidor vem mudando suas preferências em direção à eletrificação e à digitalização.
“As montadoras enfrentam uma pressão crescente para inovar em uma velocidade e uma escala que desafiam as formas tradicionais de operação.”
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