Ferrari se prepara para entrar na era elétrica. E tenta convencer fãs e investidores

O Elettrica, primeiro modelo elétrico da Ferrari que será lançado no ano que vem, promete mais de mil cavalos, mas levanta dúvidas sobre se o encanto da marca sobreviverá à era das baterias

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Bloomberg — Em uma das maiores concessionárias da Ferrari na Itália, Edoardo Schön levanta o capô de uma 340 America de 1951 que já correu em Le Mans, revelando o impecável motor V-12 sob o metal.

O cupê azul e branco ocupa posição de destaque no showroom de Milão, cercado por clássicos como Testarossa, F40 e 275 GTB4. Juntos, eles simbolizam a herança de desempenho e exclusividade que sempre distinguiu a Ferrari de seus concorrentes — e que continua atraindo uma clientela fiel e abastada às concessionárias como a Rossocorsa, da família Schön.

No próximo ano, a Ferrari e sua equipe de engenheiros, marqueteiros e revendedores enfrentarão um desafio enorme para uma empresa moldada pela glória dos motores a combustão: traduzir o apelo de seus supercarros roncadores para o Elettrica, o primeiro modelo totalmente elétrico da marca.

A missão será capturar a alma do Cavallino Rampante em um carro que deixará para trás muitos dos elementos que marcaram suas gerações anteriores: sem escapamentos trovejantes, sem o orgulho de abastecer em um posto de gasolina — apenas o zumbido amplificado de quatro motores elétricos.

“Fico me perguntando se o Ferrari Elettrica vai transmitir a mesma sensação”, disse Schön. “O desafio é evoluir o DNA da Ferrari sem alterá-lo por completo, oferecendo ao cliente uma experiência inédita, mas ainda autêntica.”

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Partes do projeto do Elettrica foram apresentadas nesta quinta-feira (9), durante o dia do investidor da Ferrari em Maranello, na Itália, antes do início das entregas, previsto para o fim de 2026. A estreia, porém, foi ofuscada por projeções financeiras abaixo das expectativas, que derrubaram as ações da Ferrari na bolsa de Milão — a maior queda da história da companhia.

“O mercado esperava uma narrativa confiante sobre expansão de margens, mas recebeu algo muito aquém disso no que diz respeito às projeções até 2030”, afirmou o analista Stephen Reitman, do Bernstein, em relatório.

A queda expõe os riscos que aguardam a Ferrari em um território ainda desconhecido. Até agora, a empresa italiana atravessou o fim da era dos combustíveis fósseis melhor do que qualquer rival. Enquanto concorrentes ainda tateiam na transição para os elétricos, as ações da Ferrari continuam sendo negociadas com múltiplos semelhantes aos de marcas de luxo como a Hermès.

Para acertar essa virada, a Ferrari precisará levar para a era elétrica a paixão cultivada ao longo de 80 anos — e ao mesmo tempo conter o avanço de rivais chineses que largaram na frente.

“O Tiranossauro Rex desapareceu porque não conseguiu se adaptar a uma mudança climática catastrófica”, comparou Peter Wells, diretor do Centro de Pesquisa da Indústria Automotiva da Universidade de Cardiff, no País de Gales. “É exatamente o que a Ferrari enfrenta agora. Ou ela se adapta rapidamente, ou vai acabar confinada aos museus.”

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Até hoje, os clientes da Ferrari demonstraram uma devoção quase religiosa à marca. Mas, para muitos, essa lealdade se ancora na combustão — o próprio Enzo Ferrari definia seus carros como “motores com rodas”, envoltos em uma carroceria bonita. O Elettrica será o primeiro teste real de até que ponto a Ferrari conseguirá levar seus fãs nessa transição elétrica — ou se precisará conquistar novos admiradores no caminho.

Avanço do mercado de elétricos

Enquanto a empresa esperava o momento certo para lançar seu primeiro carro elétrico, a China atropelou a indústria automobilística global com uma enxurrada de modelos de longo alcance, recarga rápida e alta tecnologia.

Um em cada quatro veículos de passeio vendidos no mundo neste ano será elétrico a bateria ou híbrido plug-in, e mais da metade dessas vendas ocorrerá na China.

Pela primeira vez, a BYD deve encerrar o ano como líder mundial em vendas de carros 100% elétricos — e a disputa nem é próxima: a fabricante chinesa entregou quase 390.000 veículos elétricos a mais do que a Tesla nos primeiros nove meses de 2025.

Embora os executivos da Ferrari não se importem com disputas de volume — a marca entregou menos de 14.000 carros no ano passado —, a queda das ações mostra como o espaço para erros é pequeno.

Ao detalhar as especificações técnicas e de desempenho do Elettrica, a Ferrari também reduziu seus planos de expansão da produção elétrica, aliviando o compromisso de investimento. Mesmo assim, a empresa não pode parar. Pelo menos mais um modelo movido a bateria deve chegar até 2030, adiantou o CEO Benedetto Vigna.

“Elétrico é uma nova dimensão para nós — uma nova oportunidade, e continuamos avançando nessa direção”, disse ele durante o evento.

O Elettrica entregará o equivalente a mais de 1.000 cavalos de potência e atingirá 100 km/h em 2,5 segundos — não tão rápido quanto os 1,81 segundos do Rimac Nevera, mas o suficiente para superar a versão Cyberbeast do Tesla Cybertruck. Outros supercarros podem ultrapassar a velocidade máxima do Elettrica, de cerca de 310 km/h — mas a experiência Ferrari nunca se resumiu apenas à velocidade.

“É sobre emoção, artesanato e o DNA das pistas que você sente ao volante”, disse Schön, o concessionário de Milão. “O verdadeiro teste será saber se a Ferrari conseguirá recriar essa conexão e essa paixão pela direção. Pelo que sei até agora, a marca está no caminho certo, mas só quando os clientes dirigirem é que saberemos se o carro faz jus a essa herança.”

A cidade da Ferrari

Maranello, encravada nas colinas da região italiana da Emília-Romanha, pulsa ao ritmo da empresa que domina a vida local dos seus 17.000 habitantes. As ruas exibem bandeiras vermelhas, cafés levam nomes de modelos icônicos e, na pista de testes próxima, protótipos rugem entre as árvores.

Por décadas, esse som foi o símbolo máximo da Ferrari para os moradores — e isso também começa a mudar, à medida que o futuro se inclina para baterias, engenheiros e testes silenciosos.

Outros detalhes do Elettrica serão revelados até o início das entregas, previstas para o fim de 2026. O interior será mostrado no começo do ano que vem, e o carro completo, na primavera europeia. O preço será divulgado em 2026.

A autonomia estimada é de 530 quilômetros — comparável à do Tesla Model Y, mas inferior à do Mercedes-Benz EQS. O sistema de recarga será compatível com o maior número possível de estações, e a opção de carregamento rápido permitirá chegar a 80% da bateria em 15 minutos, reduzindo a ansiedade de autonomia, afirmaram executivos da marca.

A Ferrari já ampliou sua linha com modelos híbridos e, em 2022, lançou o Purosangue, seu primeiro quatro-portas. Mas há riscos em diluir o prestígio de uma marca de elite — e o equilíbrio é delicado. O Urus da Lamborghini definiu a categoria dos “hiper-SUVs”, mas a demanda pelo elétrico Taycan, da Porsche, diminuiu, e o EQS de US$ 100.000 da Mercedes-Benz não emplacou.

O ronco do motor é um dos elementos da Ferrari a combustão que Lucas Li, empresário de 32 anos da província chinesa de Zhejiang, reluta em abrir mão.

“Se eu tiver de 4 a 5 milhões de yuans (US$ 560.000 a US$ 700.000) em mãos para comprar um carro, sempre vou preferir uma Ferrari a gasolina à elétrica”, disse Li, dono de uma 599 GTB e de uma F430, além de vários elétricos para o dia a dia.

Segundo ele, muitos dos mais de 300 membros de seu clube Ferrari pensam o mesmo. “Para nós, o principal motivo de comprar uma Ferrari é o som.”

Desafios de produção

Em um prédio de vidro e aço em Maranello, engenheiros de macacão vermelho trabalham em motores e baterias para que o Elettrica mantenha a essência da marca.

A Ferrari registrou uma patente na Itália em 2021 para um dispositivo acústico que amplifica o som dos motores elétricos e o transforma em algo mais próximo de um rugido. Uma patente posterior, nos Estados Unidos, descreveu uma “caixa de câmbio virtual” que simula a sensação de trocas de marcha, recriando parte do drama da aceleração.

“Os sons são amplificados quando faz sentido — por exemplo, durante certas acelerações, quando nossos sentidos esperam que o som esteja presente e aumente de volume”, explicou Gianmaria Fulgenzi, diretor de desenvolvimento de produto da Ferrari.

O peso é outro desafio. O Elettrica usa uma versão aprimorada da suspensão ativa do Purosangue, e a bateria foi integrada ao chassi para baixar o centro de gravidade e melhorar o controle.

“As baterias adicionam muito peso, e isso atrapalha a agilidade em curvas e frenagens”, observou Samuel De Rocco, dono da oficina Cambiocorsa Performance, próxima a Milão. “Os supercarros elétricos que dirigi têm aceleração absurda, mas fora das retas parecem caminhões. Essa é a dura realidade.”

Os vendedores da Ferrari na China tentam manter a fidelidade dos clientes ricos, contou Li. O país ainda é um mercado pequeno para a marca, mas o CEO Vigna vê potencial, já que os carros elétricos pagam tarifas de importação mais baixas. “A China pode ser um bom mercado para o Elettrica, porque os consumidores já estão acostumados a veículos elétricos”, disse.

Li afirmou que os revendedores participam de grupos de WeChat com proprietários da Ferrari, atualizando-os sobre novos modelos e tentando acalmar preocupações. Em feriados chineses, enviam presentes e convites para eventos privados, dias de pista e test drives exclusivos, para reforçar o sentimento de pertencimento. “Ter uma Ferrari faz você se sentir moderno, além de elevar o status social e o estilo de vida”, disse.

O primeiro elétrico da Ferrari precisará conquistar novos clientes — e “a China provavelmente será central nessa estratégia”, afirmou Susy Tibaldi, analista de luxo do UBS. Um modelo elétrico pode se encaixar bem nesse mercado, embora não sem obstáculos. “Os consumidores chineses de luxo não estão acostumados a esperar dois anos por um carro, e a concorrência no segmento elétrico é feroz.”

Choque de realidade

Na última década, desde sua abertura de capital, a Ferrari conseguiu se posicionar como uma marca de luxo, dominando a linguagem da escassez, do ritual e da exclusividade — de forma tão eficaz quanto a Hermès faz com suas bolsas Birkin. Com valor de mercado de cerca de € 63 bilhões, a Ferrari vale muito mais do que rivais como Porsche e Mercedes, que vendem volumes bem maiores.

Manter essa valorização será difícil. Os múltiplos caíram nos últimos meses, à medida que investidores se mostram menos tolerantes a riscos. A queda recente “já começa a parecer exagerada”, escreveu o analista James Grzinic, do Jefferies.

As ações da Ferrari subiram até 2% nesta sexta-feira (10), recuperando parte das perdas da véspera.

“O que aconteceu ontem foi um choque de realidade”, disse o analista Henning Cosman, do Barclays. “A Ferrari continua sendo uma empresa de altíssima qualidade, com uma rara visibilidade de crescimento e capacidade de execução.”

Alguns clientes, porém, mal conseguem esperar pelo novo modelo.

“A Ferrari sempre cria algo que parecia impossível — em design, desempenho e emoção”, afirmou o empresário sueco Cristian Appelberg, dono de oito Ferraris. “Assim que for possível encomendar o Elettrica, vou fazer isso. Confio plenamente neles.”

O maior risco para a Ferrari é ser vista como “mais do mesmo”, caso não consiga entregar algo realmente distinto, avaliou Markus Lienkamp, professor de engenharia da Universidade Técnica de Munique.

Ainda assim, a Ferrari já ultrapassou um marco importante em sua jornada de eletrificação: cerca de 50% das entregas atuais são de modelos híbridos — algo impensável há poucos anos. Analistas esperam que o novo supercarro híbrido F80 gere lucros expressivos.

Mas o tempo é curto. A Ferrari precisa reagir antes que novatas como a BYD avancem ainda mais. A divisão de luxo da marca chinesa, Yangwang, bateu no mês passado o recorde de velocidade de um carro de produção, com o modelo U9 Xtreme, que superou os 308 milhas por hora.

“Estamos começando a ver máquinas absolutamente insanas saindo da China”, disse Andrea Levy, colecionador e empresário de Turim.

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