Correios: plano de resgatar a estatal esbarra em transformação do setor

Empresa anunciou investimento de R$ 350 milhões, mas especialistas alertam que valor é insuficiente para fazer frente aos novos desafios e competidores do mercado

Os Correios têm o desafio de se modernizar em um mercado transformado pelo e-commerce, em que aumentou a presença de grandes empresas do setor privado (Foto: Divulgação/Correios)
29 de Junho, 2023 | 05:05 AM

Bloomberg Línea — O setor de logística e entregas tem passado por transformação no Brasil para acomodar as demandas do consumidor, em ampla medida relacionadas ao crescimento do e-commerce. A volta de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República representa o plano do governo de retomar a relevância de outrora dos Correios, mas, segundo especialistas, a estatal terá desafios para se manter competitiva em um mercado que ganha cada vez mais concorrentes e novas tecnologias.

Na última semana, o governo federal anunciou com destaque um investimento de R$ 350 milhões para “fortalecer” a companhia. Parte do investimento será aplicado na reforma de agências neste ano, e o restante, em até três anos em centros operacionais.

“Esse investimento não vai resolver a vida dos Correios”, disse Maurício Lima, sócio-diretor do Instituto ILOS, especializado em logística, em entrevista à Bloomberg Línea. “O mercado avançou muito e a tecnologia e operação dos Correios ficaram obsoletas”, afirmou.

De acordo com Lima, os Correios ainda dominam o segmento de entrega de cartas, documentos e contas, mas esse é um negócio que tem perde relevância em tempos de digitalização crescente, com envio dos mesmos por via eletrônica, que dispensa os envelopes.

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Por outro lado, no mercado de e-commerce, que continua a crescer e a atingir volumes cada vez mais expressivos, a estatal perdeu protagonismo.

“Há dez anos, a participação dos Correios nas entregas do e-commerce era de 80%, mas a empresa perdeu muito ao longo dos anos”, disse Lima à Bloomberg Línea. Em 2020, o market share dos Correios já havia caído para cerca de 45% no comércio eletrônico.

Em 2022, o e-commerce alcançou a marca de quase 370 milhões de pedidos, alta de 10% em relação ao ano anterior, segundo dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABCOMM). Para 2023, a projeção é que sejam realizados 395 milhões de pedidos no ambiente virtual.

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O sócio da ILOS disse que o setor tem margens pequenas e que mesmo o tíquete médio do e-commerce está em queda. Ou seja, na média, há menos capital para investimento em logística. “Os Correios vão precisar de mais investimentos, sob o risco de minguar ainda mais.”

Além do aumento expressivo das compras online, o consumidor brasileiro está cada vez mais exigente: quer entregas mais rápidas e com preços acessíveis, em muitos casos, com frete grátis. Nesse cenário, as maiores varejistas do país fazem diferentes apostas para ganhar eficiência, o que envolve desde a construção de ecossistemas complexos de logística até investimentos no chamado last mile (etapa final da entrega até o consumidor), o que inclui a compra de startups de entregas.

Na avaliação do especialista, um dos principais motivos para essa diminuição na fatia de mercado é o preço. “A empresa é competitiva justamente onde os custos são mais elevados, que são as localidades mais remotas”, disse. São áreas geográficas, no entanto, em que os volumes são menores.

Lima apontou ainda que o avanço das despesas administrativas dos Correios é um problema grave para a operação em um setor cujas margens são baixas. “O mercado em que a estatal está inserida é competitivo.”

Os Correios encerraram 2022 com receita de R$ 22 bilhões, ante R$ 23,5 bilhões em 2021. Isso significa que o investimento anunciado corresponde a menos de 2% do faturamento.

A estatal reportou um prejuízo líquido de R$ 809 milhões, ante lucro de R$ 2,2 bilhões no exercício anterior. Já a receita com encomendas recuou 15,8% em 2022, para R$ 10,5 bilhões.

Segundo a Associação Brasileira de Operadores Logísticos (Abol), o setor de operadores logísticos registrou um faturamento de R$ 166 bilhões em 2022. No período, R$ 18 bilhões foram dedicados ao Capex – em média, o equivalente 11% da receita total das empresas. “Empresas de médio e grande porte investem muito mais do que essa média”, disse Marcella Cunha, diretora executiva da entidade.

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“Operadores logísticos de médio e grande porte são os que mais se interessam em atender o e-commerce, devido aos altos volumes de investimentos necessários em estrutura e tecnologia”, explicou.

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Enquanto a estatal perde participação de mercado em encomendas, a disputa no setor fica cada vez mais acirrada. A Sequoia (SEQL3), empresa de logística com foco em entregas expressas, abriu capital em 2020 e acumulou 80,9 milhões de entregas em 2022, com receita líquida de R$ 1,8 bilhão no período.

A brasileira MOV3, empresa familiar voltada para soluções logísticas, atua em todos os elos da cadeia, de centros de distribuição ao last mile, com atendimento a grandes varejistas. Uma das empresas do grupo é a Carriers e-services, com soluções de entregas ao consumidor para donos de lojas virtuais.

Além de empresas dedicadas ao negócio de entregas, o mercado passou a contar nos últimos anos com varejistas que investem pesado para ganhar eficiência no e-commerce.

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O Magazine Luiza (MGLU3), por exemplo, fez quatro aquisições de empresas nos últimos anos nesse segmento: Logbee, de logística (2018); GLF, também de logística, e Sinclog, de tecnologia de logística e rastreamento (2020), além da Sode, de entregas via motocicletas (2021).

Para continuar a crescer sobre uma base expressiva, o Mercado Livre (MELI) aposta em entregas mais rápidas em todo o Brasil. Uma das estratégias foi se aliar à aérea Gol (GOLL4). As empresas fecharam um contrato de 10 anos que prevê uma frota dedicada de seis cargueiros para a operação de entregas do Mercado Livre. Existe ainda a opção de adicionar outras seis aeronaves de carga até 2025.

Na ocasião do anúncio, em abril do ano passado, o Mercado Livre informou que a companhia ampliaria o número de voos diretos de São Paulo para as regiões Norte e Nordeste, reduzindo o tempo de entrega em até 80%.

A companhia aérea Azul (AZUL4) aposta no crescimento do e-commerce para impulsionar a Azul Cargo. Em 2022, a companhia atingiu 20 milhões de pacotes transportados no mercado doméstico. Entre janeiro e maio deste ano, a empresa transportou mais de 10,9 milhões de pacotes.

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O braço de logística da companhia aérea também atua no transporte terrestre e opera cerca de 300 lojas sob o modelo de franquia, em que o representante é remunerado por todos os tíquetes que trouxer, como realização de coleta, manuseio e entrega expresso, entre outros.

“As maiores empresas do varejo e de e-commerce criaram seus próprios ecossistemas e isso dificulta ainda mais a situação dos Correios”, observou o sócio da ILOS, em referência ao fato de que essa é uma demanda já atendida por players que oferecem soluções completas. “No mercado de entregas como um todo, o grau de competição é hoje muito maior do que há alguns anos.”

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O plano para o investimento da estatal inclui a construção, em Brasília, de um complexo para abrigar as operações de tratamento, além de um centro de logística integrada. O aporte no projeto é estimado em cerca de R$ 190 milhões, entre obras e equipamentos.

O prédio irá receber uma máquina de triagem de encomendas com capacidade para tratar 300 mil objetos por dia, o que representa um aumento de 700% em relação ao tratamento manual realizado atualmente, informou a estatal.

Os Correios disseram que também estão com processos em andamento para obras dos centros operacionais de Londrina (PR) e São Luís (MA), bem como a construção de um hub internacional no Nordeste.

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“A partir de estudos técnicos, os Correios definiram que o centro internacional será construído em Natal (RN). O Nordeste hoje recebe cerca de 23% das encomendas internacionais que a empresa entrega no Brasil”, disse a estatal.

A empresa postal acrescentou que já foram licitadas as obras para reforma, ainda neste ano, de mais de 400 agências dos Correios em diversos estados. O planejamento prevê que todas as mais de 6.000 agências da rede própria sejam reformadas nos próximos três anos.

Complexidade

De acordo com a diretora executiva da Associação Brasileira de Operadores Logísticos, o e-commerce exige uma operação logística dedicada, com soluções que atendam tanto às empresas (o chamado B2B) quanto o consumidor final, com o desafio de eficiência principalmente no complexo elo do last mile.

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Segundo a especialista, para se enquadrar no perfil de operador logístico, uma empresa precisa oferecer pelo menos três serviços: transporte (por qualquer modal), armazenagem e gestão de estoques, além de atuar em mais de um setor.

Na visão de Cunha, as empresas de logística que desejam ser competitivas no setor de e-commerce devem investir constantemente em infraestrutura, sistemas e softwares, picking (coleta dos produtos), atividades acessórias, montagem de kits, sistemas de gerenciamento de carga, além de todo um monitoramento no last mile, como planejamento da rota e visibilidade em tempo real.

A executiva acrescentou que as tecnologias mais utilizadas por operadores logísticos atualmente são: ferramentas de integração com clientes; computação em nuvem; torre de controle; sensores nas cargas; e data analytics por inteligência artificial e machine learning. Ou seja, soluções em tecnologia que vão além do investimento em estrutura física anunciada pelos Correios.

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Para o sócio da ILOS, os Correios precisam se modernizar de olho dois pontos: ecossistema de logística e digitalização. “A empresa precisa ter mais parceiros, não dá para fazer tudo sozinha”, avaliou.

A diretora executiva da Abol ressaltou que o mercado de logística no Brasil é muito amplo. “Cabe à empresa, sendo pública ou privada, enxergar as oportunidades e traçar um foco para investir. É difícil fazer tudo de ponta a ponta, no Brasil inteiro”, avaliou.

Asset light

Lima disse que, no setor de logística e supply chain, normalmente as empresas subcontratam para ter mais agilidade e eficiência, pois não conseguem fazer tudo sozinhas com a mesma produtividade.

Além disso, no setor de logística o modelo asset light está em alta: a tese é que as empresas tenham o mínimo possível de ativos para reduzir custos fixos, especialmente em um cenário de juros altos.

Nesse contexto, além dos imóveis próprios, os Correios têm uma frota com mais de 23 mil veículos, o que significa gastos elevados com manutenção.

“Essa é uma frota muito grande. No setor de logística, geralmente uma operação com veículos próprios só ocorre quando se trata de um contrato dedicado para um determinado cliente, ou seja, com uso regular e que exija muito do ativo, para render uma produtividade mais alta”, disse o especialista.

Por outro lado, Lima afirmou que as agências são um diferencial dos Correios. Em sua visão, as unidades podem virar grandes pontos de recebimento de produtos dos chamados sellers, que são os vendedores nas plataformas de marketplace. “Os Correios têm a vantagem da coleta e da entrega.”

Privatização descartada

O novo plano de investimento dos Correios atende à decisão do presidente Lula de engavetar os estudos de privatização da companhia. Apesar de declarações a favor do processo, o governo de Jair Bolsonaro não conseguiu levar a venda adiante.

Durante as discussões para privatizá-la no governo passado, apenas a empresa de logística JSL (JSLG3) demonstrou interesse, mas executivos pontuaram que só avaliariam o ativo após a publicação do edital, o que acabou não acontecendo.

“Estamos cumprindo o compromisso que assumimos com funcionários e clientes dos Correios logo no início da gestão, de retomar os investimentos para garantir a qualidade no ambiente de trabalho e a excelência na prestação de serviços”, afirmou o presidente da estatal, Fabiano Silva dos Santos, em comunicado.

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Juliana Estigarríbia

Jornalista brasileira, cobre negócios há mais de 12 anos, com experiência em tempo real, site, revista e jornal impresso. Tem passagens pelo Broadcast, da Agência Estado/Estadão, revista Exame e jornal DCI. Anteriormente, atuou em produção e reportagem de política por 7 anos para veículos de rádio e TV.