Como o fornecimento de motores se tornou um gargalo crítico na aviação comercial

Normalização da cadeia de fornecimento global de aviões pode perdurar por anos, segundo especialistas ouvidos pela Bloomberg Línea, com impactos para fabricantes e companhias aéreas

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Bloomberg Línea — Mais leve que o aço e resistente à corrosão e a altas temperaturas, o titânio é crucial na fabricação de motores de aviões.

Logo após o início da guerra da Rússia contra a Ucrânia, em fevereiro de 2022, o metal passou por reajustes de preços de 20% a 30%, o que desencadeou uma espécie de “efeito dominó” na cadeia da indústria aeroespacial.

O episódio reflete um dos inúmeros desafios para o setor de aviação comercial global, que ganharam ainda mais evidência nos últimos anos.

Além do aumento de preços de diferentes componentes e insumos, fabricantes como Embraer (EMBR3), Boeing (BA) e Airbus vêm sofrendo com a imprevisibilidade, uma vez que o fornecimento na cadeia tem sido irregular, o que impacta de forma significativa o planejamento das operações e os custos.

Os efeitos vão além da indústria de fabricação aeronáutica e afetam os resultados de companhias aéreas em todo o mundo.

O quadro é agravado pela necessidade de redução de emissões de carbono, que passaram a pressionar ainda mais as empresas aéreas, segundo destacou Márcio Peppe, sócio do setor de aviação da KPMG, em entrevista à Bloomberg Línea.

A principal medida para o setor atingir suas metas de emissões é a renovação da frota.

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No entanto, até que haja uma estabilização do fornecimento de ligas metálicas para a produção de peças, fabricantes terão que se programar para atender apenas gradualmente a demanda por novos motores, explicou o executivo.

Ele apontou que a guerra na Ucrânia foi o “berço” da crise atual.

Além dos fabricantes de aeronaves, a cadeia aeronáutica tem poucas empresas que produzem motores de aviação comercial, sendo que apenas quatro que dominam o mercado com 99% de market share somadas: GE Aviation, Rolls Royce, Pratt & Whitney e CFM (parceria entre GE e Safran).

Nesse cenário, o setor de aviação depende amplamente dessas empresas e do seu fornecimento não só para produzir novas aeronaves mas também para garantir a manutenção obrigatória das frotas já em operação.

Peppe explicou que, mesmo que uma determinada peça esteja em boas condições, caso o manual do fabricante estabeleça a sua reposição, a companhia aérea precisará trocá-la dentro do prazo.

O fornecedor, por sua vez, tem que ser o mesmo que produziu originalmente o equipamento, já que tudo que envolve a indústria de aviação passa por longas e rigorosas certificações por parte das autoridades.

“No avião, não é possível substituir o fornecedor do fabricante de motor, tudo é certificado. Por isso, desde a guerra [na Ucrânia], o setor vem sofrendo com a imprevisibilidade”, disse Peppe.

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Companhias aéreas vêm reportando sistematicamente os efeitos da crise em seus resultados financeiros e em calls com analistas.

No primeiro trimestre, a Azul (AZUL4) registrou aumento significativo de custos nesse contexto. Segundo a empresa, no período elevou a quantidade de motores reservas “devido a problemas de suprimento de fornecedores”.

O executivo do setor de aviação Dany Oliveira disse que as empresas aéreas podem encomendar aeronaves de diferentes fabricantes como parte de sua estratégia ou adotar uma frota comum.

Ele ressaltou que as novas aeronaves são muito mais eficientes em consumo de combustível, o que é um fator essencial para a competitividade do setor, em especial no Brasil, que possui o combustível de aviação (QAV) mais caro do mundo segundo diferentes levantamentos.

“Dessa maneira, as companhias aéreas são incentivadas a investir em aeronaves modernas para mitigar os custos e o impacto ambiental”, disse.

“Mas a decisão sobre a composição da frota é um processo estratégico complexo, influenciado por uma série de fatores que incluem custos e financiamento, condições e dinâmica do mercado, além de questões operacionais e de eficiência, tecnologia e sustentabilidade”, afirmou o especialista.

Na avaliação do sócio da KPMG, quando uma companhia aérea trabalha apenas com um fabricante de aeronaves em sua frota, a manutenção fica restrita, embora, por outro lado, haja uma dependência maior.

“Quando se abre o leque, a aérea terá que preparar sua manutenção para essa variedade. Do ponto de vista lógico, é muito mais sensato ter uma frota padronizada”, disse Peppe.

Oliveira disse ainda que a decisão de diversificar fornecedores para projetos complexos e custosos envolve pesar a experiência, a capacidade e a escalabilidade de cada uma das companhias aéreas.

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“Isso significaria considerar se os benefícios da redução do risco de fornecimento superam os custos e os desafios operacionais de gerenciar uma frota com diferentes fornecedores.”

Companhias aéreas

No início deste ano, o CEO da Latam (LTM), Jerome Cadier, disse que o nível de produção e de entregas de grandes players de fabricação de aeronaves não voltou aos patamares pré-pandemia.

“Não só no Brasil como no mundo todo as companhias aéreas gostariam de ter mais aviões, mas os motores têm que ser enviados para manutenção mais frequentemente do que antes”, disse o executivo a jornalistas.

Na ocasião, ele apontou uma “longa fila de espera” para manutenção dos motores.

“Começamos a procurar alternativas para além da família A320 [da Airbus] que operamos. Não descartamos eventualmente buscar frotas novas, seja da Embraer, seja o A220 [também da Airbus]. Ainda estamos analisando”, afirmou.

Em entrevista à Bloomberg Línea em maio, o CEO da Embraer, Francisco Gomes Neto, disse que o fornecimento de motores melhorou para um dos modelos produzidos pela divisão da aviação comercial, mas piorou em outro. Na aviação executiva, houve avanços de maneira geral.

“Os problemas vão mudando ao longo do tempo, mas hoje não há uma crise sistêmica [na cadeia]”, disse na ocasião.

Oliveira disse que a carteira de entregas (backlog) atual da indústria global gira em torno de 17.000 aeronaves, o que acende um alerta diante da crise na cadeia.

“As tensões geopolíticas sugerem que a recuperação total do setor pode levar anos. Com base em estimativas e na falta de sinais concretos de melhoria no curto prazo, espera-se que a estabilização da cadeia de fornecimento e a superação da escassez de aeronaves levem de três a cinco anos”, disse.

O executivo afirmou que, além da escassez de matérias-primas e peças, bem como de semicondutores, o setor enfrenta gargalos em mão de obra desde a pandemia.

Neste contexto, apontou que as companhias aéreas têm sido forçadas a prolongar a vida útil das aeronaves mais antigas. “Isso eleva os custos de manutenção e o consumo e reduz o ritmo de modernização da frota.”

Guerra comercial

Do lado dos fabricantes de aeronaves, Peppe disse que a guerra comercial desencadeada pelas políticas de Donald Trump é um agravante.

“Não só a Boeing é afetada pelo aumento das tarifas. A Airbus, embora com fábrica na Europa, utiliza muitos equipamentos produzidos nos EUA. Quando o produto americano é taxado, isso afeta toda a cadeia de produção”, explicou.

No caso da Embraer, o especialista destacou um modelo de produção bastante avançado, mas também amplamente de peças importadas. “Depender da importação é um problema para a indústria”, resumiu.

Na avaliação de Oliveira, superar a crise exigirá mais do que soluções pontuais. “Será necessário um esforço coordenado entre governos e indústria, com investimentos robustos, políticas públicas específicas e incentivos para a inovação.”

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