Além do Pêra Manca: como o Alentejo quer criar novos ícones, com o Brasil na mira

Região que mais produz vinhos em Portugal e que mais exporta para o Brasil ainda tem o volume maior do que o faturamento e quer crescer em segmentos de maior valor agregado, assim como o ícone local que faz sombra e inspira os produtores

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Bloomberg Línea — O diretor de uma pequena vinícola em Portugal parecia orgulhoso e desafiador ao fim de uma longa degustação de seus rótulos.

“Quero que provem este vinho. Ele já ganhou vários prêmios internacionais. Por algum motivo, o Pêra Manca nem participa dessas disputas. Talvez o nosso seja melhor”, disse Pedro Amorim, que comanda a área de marketing da Quinta da Plansel, ao apresentar o Grande Escolha, rótulo de mais alta gama da casa.

A menção ao maior ícone do Alentejo não se deu por acaso.

O famoso vinho produzido pela Adega Cartuxa, que pertence à Fundação Eugénio de Almeida, parece um gigante que faz sombra, desafia, mas também inspira as centenas de vinícolas da região do mundo que mais exporta vinhos para o Brasil em um movimento transformador para a paisagem e a economia locais.

Nos bastidores da produção de vinhos do Alentejo, região sudeste de Portugal, existe atualmente um movimento explícito para mudar esse quadro.

A meta é expandir a “premiumização”, e cada vez mais vinícolas buscam criar novos ícones de grande qualidade, ampliar a oferta de vinhos de alta gama e deixar para trás a imagem de uma região de vinhos simples e dependente de um único nome de prestígio.

Enquanto o grande símbolo da região é considerado caro mesmo em Portugal e chega a mais de R$ 3.000 no mercado brasileiro, o Alentejo ainda tem poucos rótulos com alto valor e o mesmo nível de reconhecimento global.

“Representamos cerca de 24% do total da produção de vinhos de Portugal, mas apenas 20% em termos de peso na economia de vinhos. O volume ainda é o que guia a região, e não o faturamento”, disse Luís Sequeira, presidente da Comissão Vitivinícola Regional Alentejana (CVRA), em entrevista à Bloomberg Línea.

Isso indica que a produção ainda é muito focada nos chamados vinhos “de entrada”, que chegam ao Brasil por até R$ 100.

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“Sempre tem-se o Pêra Manca como sendo uma referência e às vezes até como um rival. Mas ter um ícone assim na região ajuda muito”, disse Sequeira.

Na visão dele, o sucesso do rótulo não obscurece o restante da região. Ao contrário, “empurra” outros produtores para cima. “Quanto mais ícones nós tivermos, melhor. Queremos ter mais vinhos famosos e valorizados assim.”

Essa lógica é uma peça central da estratégia do Alentejo para os próximos anos. Segundo Sequeira, há hoje um conjunto de projetos voltados ao desenvolvimento de novos rótulos premium, capazes de disputar espaço com o Pêra Manca e com outros clássicos da região.

“Estão no forno vários projetos que vão certamente ter sucesso com esse objetivo de criar esses ícones”, afirma. “O que é muito bom porque demonstra que a região, no seu conjunto, tem noção de que o caminho vai fazer-se pela premiumização.”

Brasil com papel central

Do ponto de vista econômico, a transição parte de uma base já considerada relevante.

Atualmente, os vinho produzidos na região geram cerca de 1,5 bilhão de euros em volume de negócios e 700 milhões de euros em valor acrescentado, segundo um estudo encomendado pela comissão.

“Cada um milhão de euros investido na cadeia regional gera em média 57 empregos e produz 3,75 milhões de euros em negócios, um multiplicador superior ao da economia portuguesa como um todo”, explicou Sequeira.

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E o plano para os próximos cinco anos prevê crescer 41% em valor acrescentado e alcançar 1 bilhão de euros em valor acrescentado, além de ultrapassar 2,4 bilhões de euros em volume de negócios, segundo ele.

Nesse movimento, o Brasil ocupa posição central.

“De longe, o Brasil é o mercado mais importante” do Alentejo, afirmou o dirigente. Hoje, apenas 23% da produção é exportada, e o Brasil lidera na categoria de vinhos tranquilos, acima de Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha.

Os dados de importação do Brasil confirmam a importância deste lado do Atlântico.

O Alentejo é a região que mais vende vinhos para o Brasil, e Portugal é o terceiro país no ranking de compras brasileiras, segundo dados da consultoria Ideal B apresentados à Bloomberg Línea pelo CEO do Inner Group, Christian Burgos, que edita o Guia Adega de Vinhos de Portugal.

“Entre vinhos tranquilos, brancos, tintos e rosados, o Brasil é o primeiro destino português no mundo”, disse.

Segundo Burgos, o processo de valorização do vinho português no mercado brasileiro já está em curso, com forte crescimento na faixa acima de US$ 50 por caixa: “São os vinhos que chegam ao mercado brasileiro por mais de R$ 150 os que mais crescem atualmente”, disse.

Para Burgos, é possível notar que a hegemonia de ícones como Pêra Manca já começa a se diluir à medida que novos produtores ganham reconhecimento.

“Há tempos nós vemos muitos outros vinhos do Alentejo mudando e se expressando enquanto ganham mercado no Brasil”, disse.

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Produtividade menor

Mais do que uma estratégia de comunicação ou de posicionamento do ponto de vista de marcas, a busca por premiumização dos vinhos do Alentejo parte de uma necessidade econômica.

Sequeira detalha a pressão estrutural que torna inviável ao Alentejo competir apenas em preço com vinhos de outras partes do mundo.

“A produtividade média dos vinhedos do Alentejo é de 6,4 toneladas por hectare. Quando comparamos com Chile ou Nova Zelândia, que produzem entre 23 e 30 toneladas por hectare, ficamos muito para trás. A competitividade nunca será pelo preço. Não é possível”, explicou.

Segundo ele, quando não se pode aumentar a produção e baixar os preços, a alternativa é melhorar a qualidade do produto e vender mais caro.

“Não haverá facilidade de reduzir custos. O que nós temos é uma condição extraordinária de produzir extraordinária qualidade. E é na premiumização que teremos que apostar”, disse.

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A cooperativa Carmim, maior player da região em volume, reforça essa leitura.

Com cerca de 3.000 hectares de vinhas de associados e produção anual de 11 a 12 milhões de litros, a empresa trabalha com cerca de 30 referências distribuídas em vários patamares de preço.

“Nós estamos em uma região de baixa produção por hectare. Portanto, não somos competitivos em custo de produção. Para nós, é uma questão de absoluta necessidade conseguir obter o valor pelos nossos vinhos que permite viabilizar esse tipo de estrutura”, explicou Rui Veladas, enólogo-chefe.

Veladas reforçou que há, em toda a região, um esforço para mostrar que o Alentejo vai além dos rótulos mais famosos. “Aparenta haver uma tentativa de mostrar que o Alentejo não é só os grandes ícones de Pêra Manca, de Cartuxa e tudo mais”, disse.

Novas gerações do Alentejo

Esse discurso ecoa entre produtores de perfil mais autoral.

Na Herdade do Rocim, o CEO Pedro Ribeiro defende que o Alentejo tem múltiplas narrativas além do seu ícone mais famoso.

“O Pêra Manca será o símbolo do Alentejo moderno. Dos anos 1990 a princípios de 2000”, afirmou. Para ele, existe hoje uma convergência entre tradição milenar e inovação contemporânea, com novos grandes vinhos que refletem a história da região.

Essa pluralidade estilística é também observada por Burgos.

Para ele, o Alentejo talvez seja hoje “a região com mais experimentações” em Portugal, com produtores explorando desde tintos encorpados com madeira até vinhos de ânfora, concreto e rótulos sem madeira alguma.

Esse dinamismo permite à região ampliar sua oferta na faixa premium: “O vinho do Alentejo já é frutado, alegre, jovial. E agora, com vinhos sendo construídos por uma nova geração de enólogos, vinhos mais provocantes estão surgindo.”

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Sequeira disse enxergar o movimento como parte de uma trajetória consistente de longo prazo.

“Estamos atentos à realidade e a procurar adaptar-nos. Sempre com uma visão de longo prazo”, disse.

Para ele, não há dilema entre tradição e inovação, e ambos são caminhos para consolidar o Alentejo como região premium.

“A combinação de castas, o conhecimento empírico e a evolução tecnológica: é isso o que torna o Alentejo único.”

O enoturismo também reforça a estratégia regional de diferenciação e valor agregado.

E a Geração Z, segundo Sequeira, tem papel relevante nesse processo: visitantes jovens pagam por experiências, passam a consumir os vinhos que experimentam nas adegas e elevam o ticket médio no varejo brasileiro quando voltam.

A diversificação estilística — de vinhos mais frescos e tensos a tintos estruturados — amplia o alcance desse público.

A conversa ocorreu durante uma viagem patrocinada pela comissão para conhecer as vinícolas que atuam para acelerar essa mudança na forma como a região produz, exporta e é vista no exterior - especialmente no Brasil.

Do lado dos produtores, essa percepção aparece com força.

Na Quinta da Plansel, por exemplo, a diretora de marketing e vendas Júlia Lindemann explicou que o faturamento atualmente vem dos vinhos de mais alta gama e dos reservas, produzidos em pequenos volumes – de 3.000 a 5.000 garrafas cada nos topos, até 10.000 nas monocastas mais trabalhadas.

A CVRA identifica sinais concretos de que a premiumização já está em curso.

Segundo Sequeira, o segmento de vinhos médios e médios-altos é o que mais recebe atenção e recursos, enquanto cresce o interesse de consumidores por vinhas velhas e brancos de guarda – ao ponto de a entidade discutir a criação de uma designação oficial de “vinhas velhas”, provavelmente a partir dos 35 anos.

A combinação de terroir, ícones e premiumização indica o caminho.

O Alentejo quer continuar sendo a região que vende volume em Portugal, mas pretende ser lembrado menos como “a terra do Pêra Manca” e mais como um ecossistema de diversos grandes vinhos, capazes de sustentar preços mais altos, margens mais confortáveis e um futuro menos dependente de commodities alcoólicas.

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