O Chile virou potência global de cerejas. E agradar seu maior comprador é um desafio

Maior exportador mundial da fruta, o Chile tem forte dependência da China e os produtores chilenos enfrentam cada vez mais pressão por qualidade, tamanhos maiores e novas variedades; enquanto isso, buscam diversificar os mercados e miram o Brasil

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Bloomberg — A agitada indústria de cerejas do Chile floresceu ao passar de uma cultura de nicho para um fenômeno de exportação de bilhões de dólares, respondendo por cerca de metade das remessas globais e gerando no ano passado mais receita para o país do que o cobiçado metal para baterias, o lítio.

Nove em cada dez cerejas chilenas têm a China como destino, onde a fruta chega a tempo das comemorações do Ano-Novo Lunar, enquanto pomares do hemisfério norte, em lugares como Estados Unidos, Espanha e Turquia, permanecem dormentes.

Mas os produtores chilenos correm o risco de se tornarem vítimas do próprio sucesso.

Uma colheita recorde na safra passada saturou o mercado chinês semanas antes do feriado e expôs problemas de qualidade que derrubaram os preços — especialmente no início da safra, quando compradores em Xangai costumam pagar prêmios elevados pelos primeiros carregamentos enviados por via aérea a partir do Chile.

Na corrida para capturar esses preços iniciais mais altos, alguns exportadores embarcaram cerejas moles demais ou pequenas, o que provocou rejeições e prejudicou a imagem do Chile.

Exportadores excessivamente zelosos voltaram a tropeçar no início desta safra, antes da chegada, em dezembro, do primeiro carregamento marítimo ao porto de Nansha, no sul da China. A experiência ilustra as dores de crescimento de um setor que se tornou um pilar da agricultura chilena.

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Ao longo de uma faixa fértil do Vale Central do Chile, José Saenz estica o braço e aperta suavemente uma cereja vermelho-amarelada que amadurece sob o sol do fim da primavera.

Trata-se de uma nova variedade apresentada a produtores como ele como a próxima grande aposta para o lucrativo mercado chinês, onde cerejas costumam ser dadas de presente como símbolo de boa sorte e prosperidade.

Para Saenz, que cultiva a fruta emblemática há quase três décadas, o risco é elevado.

“Os compradores chineses querem fruta firme, doce, sem defeitos e com pedúnculo bonito”, disse Saenz, cujos pomares somam 60 hectares em três áreas diferentes ao sul de Santiago, a capital chilena. “A primeira coisa que eles fazem é colocar a mão na caixa. Se encontram fruta mole ou com falhas, rejeitam o palete na hora.”

Na tentativa de agradar o paladar exigente da China com frutas mais resistentes, melhoristas têm lançado variedades sob medida. Para os produtores, trata-se de uma aposta de longo prazo: as árvores levam anos para produzir, e não há garantia de aceitação do mercado. Alguns já estão rejeitando a Nimba, uma das variedades mais recentes lançadas nos últimos anos.

A reputação chilena nas cerejas se apoia em uma combinação de geografia, clima mediterrâneo e expertise logística e comercial. As horas de frio do inverno quebram a dormência das plantas, enquanto a estação seca de maturação ajuda a evitar rachaduras causadas pela chuva.

É como imaginar o Vale Central da Califórnia espelhado ao sul do equador. À medida que os envios aéreos de início de safra para a China diminuem, o Chile dá início ao Cherry Express, com remessas marítimas diretas aos portos chineses.

Os problemas começaram a aparecer na safra passada. Uma colheita recorde prometia lucros elevados para agricultores que expandiram pomares para atender ao apetite voraz da China. Mas parte da produção decepcionou os clientes que pagam mais. Houve ainda falhas no transporte e um raro contratempo logístico. Os preços — e os lucros — despencaram.

“A safra anterior foi desafiadora, principalmente porque um volume muito grande de fruta chegou antes do Ano-Novo Chinês, levando a uma oferta excessiva em um período de demanda mais fraca”, afirmou a associação setorial Frutas de Chile em nota à Bloomberg News.

Entidades do setor iniciaram um processo de autocrítica. Uma proposta inicial para impor um tamanho mínimo acabou diluída em diretrizes voluntárias e treinamentos. Os produtores foram incentivados a embarcar apenas frutas grandes e de alta qualidade, para proteger a prestigiada marca “Chile”.

“Se enviarmos fruta boa, talvez o volume caia, mas o retorno será melhor”, disse Sergio Karelovic, responsável pelas operações da Dole Plc no centro do Chile. “O mercado não comporta tudo e não aceita tudo.”

As lições do ano passado impulsionaram uma nova rodada de investimentos técnicos, que vão de coberturas protetoras ao uso de fungicidas.

Para passar nos testes dos importadores chineses, as cerejas precisam ter mais de 28 milímetros de diâmetro, conter mais de 18% de matéria seca, exibir coloração castanho-escura intensa e apresentar pedúnculo longo e verde, sinal de frescor, explicou Mario Maureira, agrônomo da empresa de serviços agrícolas Agroconnexion.

“A cereja ideal é firme, crocante e suculenta, com textura consistente e bom sabor”, disse Maureira. “Trabalhamos pela excelência — não para dobrar a produção, mas para levá-la a um novo patamar.”

Mesmo pequenas melhorias podem render ganhos relevantes. Subir um nível na classificação de tamanho pode acrescentar cerca de US$ 1 por quilo ao retorno do produtor. “Quanto maior a fruta, maior a rentabilidade”, afirmou Maureira.

Os produtores também estão atentos às embalagens. Em uma feira recente do setor, em Santiago, a fabricante boliviana La Papelera exibiu caixas com detalhes dourados e caracteres chineses, que, segundo a empresa, agradam ao gosto local.

“Os chineses geralmente gostam de coisas chamativas”, disse Adolfo Silva, consultor de vendas externas da companhia. “Design em 3D, dourado intenso, acabamentos diferentes.”

Perspectiva cautelosa

O Chile projetava embarcar um recorde de 131 milhões de caixas, o equivalente a 655 mil toneladas métricas, na safra 2025-2026, superando o recorde do ano passado, de 125 milhões de caixas. Mas condições climáticas adversas no fim da safra devem reduzir esse volume para cerca de 110 milhões de caixas, ou aproximadamente 550 mil toneladas, segundo participantes do setor.

Ainda assim, os problemas de excesso de oferta e qualidade que pressionaram os preços na fase mais cara da colheita, com envios aéreos, em grande parte desapareceram agora que as remessas para a China são feitas por navio, em uma viagem de cerca de 23 dias.

Em dezembro, volumes de variedades tradicionais de exportação, como a Santina, surpreenderam negativamente, mas a qualidade se manteve, estabilizando os preços, segundo produtores e exportadores.

“Com a chegada dos primeiros embarques marítimos, os preços na China se mantiveram estáveis, chegando até a níveis semelhantes aos do ano passado”, disse Saenz, destacando os retornos para frutas robustas de tamanho “double jumbo”. “Também esperamos que a queda na produção chilena comece a ficar mais perceptível em breve.”

Apresentada como uma inovação por sua crocância e maturação precoce, a Nimba foi vendida por cerca de metade do preço de outras variedades e se tornou um alerta, segundo Pablo Alvayay, gestor de uma central de embalagens de capital chinês no centro do Chile. “Fruta enorme, mas com textura mole e sabor fraco”, disse ele. “O chinês toca uma vez e não quer mais.”

Cesar Medina, que administra um pomar para um fundo de investimento canadense que apostou pesado em cerejas chilenas na última década, afirmou que a Nimba “foi vendida muito barata, então não foi um bom negócio”. “Agora o mercado começou a mudar com a chegada da Santina, que é um pouco mais procurada e mais conhecida. Então os preços estão um pouco mais normais.”

A Andes New Varieties Administration (ANA), empresa chilena responsável pela Nimba, defendeu a variedade, mas reconheceu que a firmeza é um ponto fraco e que ela exige manejo técnico rigoroso e práticas específicas que nem sempre são adotadas.

“Infelizmente, neste ano voltamos a observar empresas dispostas a sacrificar sabor em variedades precoces para chegar alguns dias antes em busca dos preços mais altos, sem compreender que o bom posicionamento de um novo produto é essencial para o sucesso de longo prazo”, disse a empresa em nota à Bloomberg News. “Nesses casos, os resultados foram muito piores do que o esperado, prejudicando a reputação do produto.”

Laços mais estreitos

Nos últimos anos, os vínculos das cerejas entre Chile e China se aprofundaram. Já não se trata apenas de compradores distantes em Xangai apostando em frutas exóticas do outro lado do mundo. Hoje, cidadãos chineses se mudam por várias semanas do ano para cidades produtoras como Curicó e Rancagua.

Alguns grupos chineses são donos de fazendas e centrais de embalagem. Da mesma forma, grandes exportadores chilenos avançaram na cadeia, estabelecendo presença comercial no gigante asiático. Os dois países assinaram um acordo de livre comércio há duas décadas, e a China é o principal parceiro comercial do Chile.

Ainda assim, o boom das cerejas reduziu parte do caráter exclusivo do produto chileno na China. “Antes, dar uma caixa de cerejas chilenas era um luxo”, disse Alvayay. “Agora é um presente mais comum.”

Consumidores chineses, antes encantados pela fruta pequena, tornaram-se mais exigentes, disse Gonzalo Salinas, analista do Rabobank.

Para alcançar consumidores mais jovens e preocupados com a saúde, alguns produtores chilenos passaram a vender embalagens menores, pensadas para o consumo diário, destacando os atributos nutricionais da fruta.

“O consumidor chinês ficou mais informado, conhece melhor as cerejas e espera a mais alta qualidade em cada compra”, afirmou Salinas, acrescentando que eventuais quedas de preço ligadas à qualidade podem ser compensadas por uma base de consumidores em expansão.

Enquanto os preços se estabilizam nesta safra, produtores chilenos lidam com um clima mais quente e seco e com ameaças de pragas. “Somos orientados a instalar estufas, sistemas de sombreamento, todo tipo de tecnologia”, disse Alejandro Prieto, que cultiva 20 hectares perto de Rapel, no centro do Chile. “Os custos só sobem enquanto os retornos caem. Isso não é sustentável.”

Os custos de mão de obra também podem aumentar depois da vitória do conservador, José Antonio Kast, na eleição presidencial. Ele promete reprimir a imigração irregular e atrapalhar a entrada sazonal de bolivianos que trabalham nas colheitas .

Os produtores tentam se adaptar e gerenciar riscos. As colheitas agora são escalonadas entre mais regiões e variedades, como as bicolores Rainier e Cherry Glow, suavizando oferta e qualidade. Ao mesmo tempo, o setor se diversifica dentro da própria China e em outros mercados, como Estados Unidos, Coreia do Sul, Brasil e Indonésia.

O comitê de cerejas da Frutas de Chile lançou uma nova campanha de marketing na China para reforçar a marca e a fidelidade do consumidor. A JD Fresh, braço de produtos frescos da gigante chinesa do varejo JD.com Inc., espera que as vendas de cerejas chilenas continuem crescendo neste ano, após o boom da safra passada. A empresa afirmou que agora inclui um paquímetro em cada caixa para garantir aos compradores o tamanho e a consistência.

Os preços e as vendas, disse a JD Fresh, dependerão, em última instância, de como a qualidade se mantém ao longo da safra.

Hernán Garcés, diretor-presidente da Garcés Fruit, um dos maiores produtores do Chile e pioneiro na presença na China desde 2017, concorda que, embora o consumo chinês siga forte, os compradores exigentes querem frutas grandes, doces, firmes e brilhantes “que reflitam a alegria e a energia que as pessoas querem compartilhar no Ano-Novo”.

“O futuro é guiado pela qualidade, não pelo volume”, afirmou Garcés.

No robusto portfólio de exportações de frutas do Chile, que inclui uvas, maçãs e berries, as cerejas continuam se destacando mesmo com a maturação do setor, disse Rodrigo Traverso, gerente de contas da AgroFresh Solutions, empresa americana que fornece produtos e serviços pós-colheita.

“As cerejas costumavam ser um negócio extremamente lucrativo tanto para produtores quanto para exportadores”, disse Traverso. “Hoje está um pouco mais apertado, mas ainda é um bom negócio em comparação com outras frutas.”

À medida que a fruta se torna mais uma commodity do que um luxo, pequenos produtores como Saenz e Prieto buscam se diferenciar com variedades delicadas e de alto padrão.

“Com tanta fruta no mercado, os preços inevitavelmente caem”, disse Prieto. “Ainda há demanda por fruta de boa qualidade, mesmo com excesso de produção. A grande incógnita é por quanto tempo isso vai durar.”

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