Chocolate renasce no sul da Bahia com nova geração de produtores de cacau fino

Diante de desafios históricos como a praga vassoura-de-bruxa e os preços defasados, produtores resgatam a atividade com foco em qualidade, rastreabilidade e chocolate de origem e posicionam a região como referência em produtos finos

Produção de cacau no Sul da Bahia
24 de Julho, 2025 | 02:36 PM

Bloomberg Línea — Na terra de Jorge Amado e de seus personagens eternizados como Gabriela, do romance Gabriela, Cravo e Canela, uma nova geração de produtores e empreendedores tem investido na produção de cacau artesanal, de olho em um consumidor atento à forma como o chocolate é produzido e também disposto a pagar mais por uma barra do produto.

A região do sul da Bahia já foi uma das maiores exportadoras de cacau, mas perdeu espaço no mercado global depois da chegada da vassoura-de-bruxa, praga que dizimou lavouras no final de 1980 e ainda hoje é uma das principais vilãs.

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Costa do Marfim e Gana lideram atualmente a produção global, e o Brasil ocupa a sexta posição na produção mundial do fruto.

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Cerca de três décadas depois, filhos e netos daquela geração de produtores buscam novos caminhos para se manter na atividade, com foco na produção de cacau fino, na qual a qualidade ganha relevância em detrimento da quantidade.

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Se antes o destino do cacau baiano passava quase exclusivamente pelas tradings e por multinacionais como Cargill, Barry Callebaut e Nestlé, que ainda mantêm presença industrial na região, o foco tem mudado para a produção local de cacau fino, com rastreabilidade, fermentação controlada e identidade própria, voltado à fabricação de chocolates bean-to-bar (do grão à barra) e também orgânicos.

O fator dos preços da amêndoa também contribuiu para essa virada estratégica, já que a venda do cacau tem como base as cotações negociadas na bolsa de Nova York.

Os produtores percebiam havia anos que a qualidade do cacau da região era alta, mas os preços internacionais então relativamente baixos da commodity não acomodavam essas variações premium. A alta do cacau nos últimos dois anos e meio e a maior demanda pelo produto de maior qualidade mudaram o cenário.

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Os futuros da commodity, que rondavam os US$ 2.300 por tonelada no fim de 2022, subiram para até US$ 12.600 em dezembro de 2024. Neste ano, o cacau tem flutuado e perdeu força nos últimos meses, mas era cotado a US$ 8.240 em 24 de julho, ainda bem acima do patamar anterior.

Rodrigo Souza Nazarete trabalha na Fazenda Riachuelo há 8 anos

Hoje, a região já é referência na produção de chocolates finos, com diversos produtos premiados dentro e fora do Brasil.

Na edição deste mês do Chocolat Festival, que ocorreu no centro da cidade de Ilhéus, foi possível encontrar dos mais diferentes tipos e usos para o cacau baiano: geleias, cremes, cervejas, além, claro, de diversas variações de chocolate.

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“O cacau aqui é mais do que produto: é história, floresta em pé, transformação social”, disse Maurício Galvão, secretário de Turismo de Ilhéus. Segundo ele, 70% da produção da região é feita por agricultura familiar.

A meta, explica, é integrar o setor com educação, cultura e turismo.

“O turista colhe cacau, aprende sobre o processo e entende por que aquele chocolate tem um sabor diferente.”

Quarta geração da família

Marcela Tavares Monteiro, da Cacau do Céu, é uma das que apostaram na produção de cacau para chocolate fino e colheu os frutos com premiações em competições brasileiras e no exterior.

Ela conta que no final de 2008 viajou para o Canadá para estudar sobre a fabricação de chocolate, e, três anos depois, fundou a marca Cacau do Céu junto com a sua irmã, Manuela.

Da quarta geração de uma família tradicional do cacau, Monteiro diz que começou a trabalhar na produção bean-to-bar (do grão à barra) na região de Ilhéus, em 2009, antes mesmo de o termo se popularizar no Brasil.

Chocolate Cacau do Céu premiado dentro e fora do país

“A crise agora dos preços não é uma crise para quem é daqui. É um preço justo, porque passamos tempo demais sendo mal remunerados”, disse Monteiro em entrevista à Bloomberg Línea.

A crise mencionada por Monteiro é sobre o aumento dos preços da amêndoa na bolsa de Nova York, que nos últimos anos gerou pressão sobre a grande indústria de chocolate.

Hoje, a sua marca tem duas unidades produtivas no país: uma em Ilhéus, com produção de 500 quilos ao mês, e outra em Santa Rita do Sapucaí (MG), que produz 1,5 tonelada ao mês, mas conta com capacidade para 6 toneladas mensais.

“Antes da vassoura-de-bruxa, o cacau baiano era respeitado. Depois, perdemos qualidade e produtividade. Agora, com o cacau fino, estamos recuperando isso.”

Tavares investiu R$ 5 milhões para expandir sua fábrica em Minas Gerais para abastecer o Sudeste, hoje seu principal mercado consumidor. Em São Paulo, é possível encontrar o seu produto na Casa Santa Luzia.

O carro-chefe da marca são os produtos liofilizados com frutas naturais, como morango e maracujá.

Fermentação do cacau na fazenda Riachuelo, em Ilhéus

“O desafio não é fazer chocolate. É vender chocolate”, disse.

A matéria-prima de Monteiro tem origem em sua própria fazenda e na de um produtor parceiro, João Tavares, da Fazenda Leolinda, cujas amêndoas dispostas em 340 hectares de terra foram reconhecidas em prêmios internacionais.

Depois de décadas produzindo para a indústria tradicional, ele conta que apostou na fermentação controlada, rastreabilidade e genética diferenciada das amêndoas para se diferenciar na produção de cacau.

Hoje, cerca de 70% da sua produção é considerada cacau fino.

“Com a vassoura-de-bruxa, ou a gente agregava valor ou quebrava. Foi uma questão de sobrevivência”, disse João Tavares.

Tavares explica que ainda não produz chocolates, mas está nos seus planos no futuro próximo.

Segundo ele, o principal desafio é a sucessão dos negócios — algo que foi reiterado por cacauicultores com quem a Bloomberg Línea conversou.

“Meus filhos foram para outras áreas, traumatizados pela crise que vivemos. E também há o desafio da monilíase. E o clima, que empurrou a safra para setembro.”

Da árvore à barra

A idealizadora da marca Modaka, Patrícia Viana Lima, é a quarta geração de uma família envolvida com a cacauicultura no sul da Bahia.

Ela comanda a produção de chocolates orgânicos a partir das amêndoas cultivadas na própria fazenda da família, no município de Barro Preto.

A marca, criada em 2012, é fruto de um movimento que começou em 2008, quando seus pais passaram a buscar formas de agregar valor à matéria-prima, que até então era vendida apenas como cacau in natura.

“Somos tree-to-bar mesmo. Tudo começa na lavoura, com cacau da nossa própria origem. E tudo é orgânico, certificado desde os anos 2000”, disse Lima. A fábrica da marca funciona dentro da fazenda.

Patrícia Viana Lima, da Modaka

Com uma média de 1,5 tonelada de amêndoas processadas por ano, e capacidade produtiva de 3 toneladas em anos mais produtivos, a Modaka trabalha com diferentes linhas de chocolate, todas orgânicas, além de produtos sazonais feitos com frutas como acerola, cacau e cupuaçu.

O carro-chefe inicial foram os amêndoas crocantes, mas aos poucos outras modalidades, como a barra e o nibs também ganharam espaço no portfólio.

“Temos uma variedade de tabletes que agrada diferentes perfis”, disse.

A gestão da Modaka hoje envolve cerca de oito pessoas que trabalham sob o sistema de parceria rural, popularmente conhecido na região como meieros.

Nessa modalidade, os meeiros trabalham em um sistema de parceria agrícola, no qual o trabalhador cultiva e colhe o cacau em uma terra que não é sua e, em troca, divide a produção com o proprietário da terra.

Além das parcerias, Lima tem dois funcionários contratados sob o regime CLT na fazenda e uma equipe enxuta na fábrica. “Temos o apoio de instituições como Sebrae e Fieb, que ajudam com projetos voltados à cadeia do cacau e do chocolate”, afirma.

Entre os principais desafios, Patrícia cita a baixa produtividade por conta de doenças como vassoura-de-bruxa e podridão parda, o clima instável, a mão de obra escassa e o dilema da sucessão familiar.

“Ainda sou eu à frente do negócio. Meu pai costuma dizer que a região não trabalhou a sucessão. Mas vejo que agora há um movimento em torno do cacau e do chocolate que está atraindo filhos, netos e bisnetos de volta para perto. A nova geração é mais digital, menos campo. É preciso equilíbrio para garantir continuidade.”

Cabruca, rastreabilidade e chocolate de origem

Na Fazenda Riachuelo, da Mendoá Chocolates, a meta é ampliar a produção própria e manter o foco em qualidade.

Com 2 mil hectares, dos quais 1.800 são dedicados à produção de cacau no sistema agroflorestal cabruca, que integra o cultivo à vegetação nativa da Mata Atlântica, a principal fazenda do grupo localizada em Ilhéus produz chocolate fino com rastreabilidade de ponta a ponta.

“Brincamos que fizemos uma sociedade com a vassoura-de-bruxa. Ela fica com 70% e nos deixa 30%”, disse Riane Brito de Costa, coordenadora de qualidade da Mendoá.

Cacau afetado pela vassoura-de-bruxa

Desde 2023, toda a produção de cacau orgânico da fazenda é destinada exclusivamente à fábrica própria.

O cacau convencional ou que apresenta algum grau de defeito é colhido e comercializado como commodity para as tradings, após ser classificado conforme o grau de qualidade.

A fábrica tem potencial para processar até 3 toneladas de chocolate por mês, mas atualmente opera com uma média de 1 tonelada, sendo que atualmente processa 179 kg por dia no período de entressafra, abaixo do pico anterior de 300 kg/dia.

“A manteiga de cacau subiu entre 20% e 25% este ano. Mesmo assim, seguimos com rastreabilidade total”, afirmou Costa. A maior parte da produção da Mendoá vai para São Paulo, mas os produtos também abastecem o mercado baiano e outras regiões.

A fazenda tem cerca de 100 funcionários na colheita e 26 na fábrica, todos contratados sob regime CLT, explica a coordenadora de qualidade do grupo.

Além do cacau, a Mendoá cultiva frutas como cupuaçu e cajá. A sibira do fruto, que prende as sementes à casca, são vendidas para empresas que produzem ração de peixe, enquanto que a casca do cacau é revertido em adubo.

No terreno da fazenda, há ainda a Escola Lava-Pés, mantida dentro da propriedade para atender os filhos dos trabalhadores. As aulas oferecidas são até o sexto ano.

Secagem de cacau na Fazenda Vila Rosa (BA)

Aproximadamente 20 famílias vivem na Fazenda Riachuelo, que existe desde 1855 e hoje é administrada com base em um projeto idealizado pelo pesquisador Raimundo Moroó, da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e com investimentos dos irmãos Geraldo e Leandro Almeida.

Para manter a qualidade do produto final, a separação entre o cacau para chocolate e o que vai para o mercado convencional começa na colheita: apenas os frutos no ponto ideal de maturação são fermentados e secos para uso próprio.

“Temos padrões que precisam ser seguidos, inclusive no ponto da colheita. O cacau que não utilizamos é destinado ao mercado de commodity.”

Mesmo com as dificuldades climáticas recentes, agravadas por fenômenos como El Niño e La Niña, que afetam os ciclos de chuvas e de safra e entressafra desde 2022, a expectativa é de retomada gradual da produção.

Segundo Costa, o cacau é uma planta sensível, que reage a variações de temperatura e umidade.

“É um fruto mágico, que se adapta às condições, mas sofre com o frio e a chuva excessiva”.

Um novo olhar sobre a terra

Em Itacaré, a cerca de 75 quilômetros de Ilhéus, a Fazenda Vila Rosa aposta em outro modelo de negócio, que mescla a aposta no cacau com o turismo rural para manter o local preservado.

O americano Alan Slesinger trocou a vida de paisagista em Nova York por um projeto multifuncional que mistura turismo, história, arquitetura e chocolate artesanal.

“Meu foco nunca foi produzir toneladas de cacau, mas mostrar o processo. Chocolate é poesia. Ele fala de amor, de amizade. O chocolate é só o meio”, disse.

Alan Slesinger, da Fazenda Vila Rosa, em Itacaré

Alan conta que vendeu seus imóveis no East Village, em Nova York, em 2006, no auge do mercado e investiu na fazenda na Bahia.

“Eu comprei aqui como quem entra faminto num restaurante e pede duas travessas cheias. Era um sonho”, lembra.

Hoje, a fazenda recebe milhares de visitantes por ano e está próxima do breakeven, conta. Só em janeiro, segundo ele, passaram mais de mil pessoas por ali.

O tour completo com todas as etapas de produção do cacau e a história do casarão da fazenda custa R$ 100 por pessoa.

O cacau cultivado ali vem de árvores antigas, e pouco produtivas. “Minha floresta é fantasma. Árvores velhas, alongadas. Não plantei para alta produtividade”, disse.

Além disso, produzir em larga escala, segundo ele, seria inviável. “Só o salário de um funcionário básico é R$ 30 mil por ano. Para isso, você precisa de muito cacau e minha fazenda é velha.”

Mel do cacau também é comercializado

Dois terços da receita da Fazenda Vila Rosa vêm do turismo rural de experiência: visitas guiadas, degustações, arquitetura e jardins.

O restante vem da venda de chocolates finos, feitos com o cacau local e comercializados também em uma loja própria em Itacaré.

O espaço virou referência regional, especialmente em dias nublados, quando se torna uma das principais opções fora das praias.

O projeto envolve entre 16 e 25 funcionários, conta.

“Eu vejo a fazenda como um organismo vivo. Um jardim que sempre está crescendo, amadurecendo, envelhecendo e renascendo”, disse. Aos 59 anos, ele se divide entre surf, criação artística e a gestão do espaço.

“Não sou arquiteto, mas aqui eu posso brincar. Tenho liberdade para criar. E isso, para mim, vale mais do que qualquer planilha de lucro.”

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Naiara Albuquerque

Formada em jornalismo pela Fáculdade Cásper Líbero, tem mestrado em Ciências da Comunicação pela Unisinos, e acumula passagens por veículos como Valor Econômico, Capricho, Nexo Jornal e Exame. Na Bloomberg Línea Brasil, é editora-assistente especializada na cobertura de agronegócios.