Bloomberg Opinion — Uma das características marcantes do segundo mandato de Donald Trump é uma série interminável de ataques juridicamente duvidosos aos alicerces das instituições americanas.
A tentativa do seu governo de destruir a independência do Federal Reserve, após o diretor da Federal Housing Finance Agency vasculhar registros privados de hipotecas para inventar acusações de má-fé e criar um pretexto para demitir uma diretora do conselho do Fed, é apenas o exemplo mais recente.
Mas há um ditado popular em Washington: o maior escândalo não são as ações ilegais. São as ações legais. Portanto, é importante não deixar que certas medidas perniciosas de Trump, mas permitidas pela legislação, se percam na confusão.
A principal delas é a demissão de Jeffrey Kruse do cargo de chefe da Agência de Inteligência de Defesa (DIA) no início de agosto. Kruse foi demitido em uma sexta-feira à tarde sem qualquer explicação — semelhante à forma como o governo lidou com as demissões de oficiais militares de alto escalão no início deste ano.
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Demitir oficiais militares de alto escalão é, sem dúvida, um exercício legítimo do poder presidencial, e certamente não há nenhuma obrigação legal para que o presidente ou sua equipe expliquem seus motivos. Ainda assim, é altamente incomum demitir comandantes dessa forma.
Ao contrário dos secretários de gabinete e outros nomeados políticos convencionais, que renunciam naturalmente quando um novo presidente é eleito, o costume de longa data nos Estados Unidos é que os oficiais de alta patente permaneçam em seus cargos ao longo de vários governos.
Kruse parece ter sido demitido porque a Casa Branca não gostou da avaliação da DIA sobre a eficácia dos ataques aéreos dos EUA contra instalações nucleares iranianas.
Mais uma vez, o presidente tem o direito legal de punir o chefe de uma agência de inteligência por chegar a uma conclusão com a qual ele discorda. Mas, na ausência de evidências claras de má conduta, isso é extremamente desaconselhável.
O trabalho de inteligência é difícil. As agências frequentemente discordam de boa-fé sobre os assuntos. Se os tomadores de decisões políticas começarem a deixar claro que apenas certas conclusões são aceitáveis, a qualidade do produto do trabalho de inteligência será comprometida e, em última instância, eles receberão informações erradas. E falhas de inteligência podem ter consequências de maneiras espetaculares.
Trump, mais do que ninguém, deveria saber disso: a história de sua ascensão ao poder não pode ser contada sem explicar como a guerra dos EUA no Iraque desacreditou George W. Bush e a cúpula do Partido Republicano, mesmo mantendo grande parte do apelo básico do conservadorismo cultural.
Bush nunca fez nada tão desastrado quanto demitir abertamente o chefe de uma agência por ter dito algo errado, mas suas formas mais sutis de influência pioraram as coisas. A abordagem mais grosseira de Trump arrisca provocar desastres ainda maiores.
E ele aplicou a mesma abordagem direta ao reino transparente e sóbrio dos dados econômicos. O cargo de comissário do Bureau of Labor Statistics (BLS) dos EUA é ocupado por um nomeado político confirmado pelo Senado, então Trump claramente tinha autoridade para demitir Erika McEntarfer do posto há várias semanas. Em seu lugar, ele quer instalar um economista hiperpartidário da Heritage Foundation, de direita.
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A vantagem propagandística de nomear um aliado tão próximo para o Bureau of Labor Statistics é bastante clara. E é inquestionavelmente legal. Mas esse tipo de movimento, para citar outro ditado famoso, é pior do que um crime; é um erro.
É muito mais importante, tanto substantiva quanto politicamente, tentar melhorar as condições econômicas do que tentar melhorar os números econômicos. A menos que haja uma recessão total, praticamente qualquer situação pode ser vista como um copo meio cheio ou meio vazio.
A Casa Branca geralmente tenta defender o copo meio cheio, enquanto o partido da oposição defende o copo meio vazio. Manipular as estatísticas poderia dar uma vantagem à Casa Branca, mas também tornaria mais fácil para a oposição descartar qualquer boa notícia como invenção.
Uma questão mais séria é que dados econômicos confiáveis são essenciais para uma política econômica eficaz.
No início do mandato do ex-presidente Barack Obama, por exemplo, o Bureau of Economic Analysis do Departamento de Comércio dos EUA subestimou a gravidade da recessão. Os dados acabaram sendo revisados, e é possível argumentar que os números menos sombrios fizeram Obama parecer melhor naquele momento.
Mas, a longo prazo, foi um desastre: nem o Congresso americano nem o governo tinham uma leitura precisa da situação da economia dos EUA, o que levou a um estímulo econômico mais fraco, com efeitos desastrosos tanto para seus próprios projetos políticos quanto para os trabalhadores americanos.
A tendência de Trump de tratar discordâncias como desrespeito — e de confundir concordância com respeito, uma característica igualmente perigosa que ficou flagrante na reunião de três horas do gabinete na semana passada — cega tanto o país quanto a ele mesmo para a possibilidade de que as coisas não estejam indo tão bem quanto ele gostaria.
A demissão na semana passada do diretor do Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), o que é um mau presságio para a saúde pública dos EUA, lembra a hostilidade do presidente à ideia de testes generalizados para covid-19 no início da pandemia.
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É fácil esquecer, mas muito antes das controvérsias sobre as regras de máscaras, fechamento de escolas e vacinas, houve um longo período em que o governo poderia ter tomado medidas preventivas contra um vírus que então estava limitado à China. Em vez disso, optou por minimizar os riscos.
Um presidente certamente tem o direito de demitir o chefe do CDC, da DIA ou do BLS. Essas são simplesmente decisões ruins “normais”, não aquelas que levantam questões constitucionais. Mas elas costumam ter consequências, e os impulsos de Trump são consistentemente irresponsáveis.
Esta coluna reflete as opiniões pessoais do autor e não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.
Matthew Yglesias é colunista da Bloomberg Opinion. Cofundador e ex-colunista do site Vox, ele escreve o blog e newsletter Slow Boring. É autor do livro “One Billion Americans”.
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