O mundo precisa de uma agenda para o que falta às pessoas; e outra para o que sobra

Em novo livro, Ezra Klein e Derek Thompson argumentam que a ‘abundância’ é necessária para lidar com a escassez de bens como moradia; mas também é preciso reduzir a super produção do que é nocivo, como o que há no mundo digital

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Bloomberg Opinion — O novo livro de Ezra Klein e Derek Thompson, Abundance: How We Build a Better Future (“Abundância: Como Construir um Futuro Melhor”, em tradução livre), é algo raro: um livro sério sobre políticas públicas que também deu início a um movimento.

Políticos democratas experientes passaram a citar o livro (e ativistas progressistas a denunciá-lo). “Clubes da Abundância” foram formados em cidades por todos os Estados Unidos.

Acho que o argumento é válido até certo ponto (embora muitas outras pessoas, como Brink Lindsey, Steven Teles, Marc Andreessen e Philip K. Howard, tenham defendido uma posição semelhante durante anos).

Os políticos progressistas têm impedido o progresso ao privilegiar grupos de interesse em detrimento do bem comum e seguir procedimentos em vez de alcançar objetivos.

O resultado é uma escassez de bens desejáveis, como moradia ou infraestrutura.

O que Klein e Thompson dizem sobre os Estados Unidos é ainda mais verdadeiro no Reino Unido, onde o preço médio das casas é oito vezes e meia a renda média da população, em comparação com cinco vezes e meia nos Estados Unidos.

Mas eu acrescentaria que a agenda da abundância precisa ser equilibrada por uma agenda antiabundância.

Em muitas áreas importantes da vida, sofremos de uma crise de superprodução, e não de subprodução — temos coisas (ou estímulos) em excesso, e não em falta.

Essa superprodução é prejudicial à nossa saúde física e mental. E a combinação bizarra de abundância ruim em excesso e abundância boa em falta (como colesterol ruim em excesso e colesterol bom em falta) está na raiz do mal-estar da nossa civilização.

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A manifestação física óbvia desse problema é o junk food: sofremos com o excesso de gordura, açúcar, sal e aditivos alimentares empilhados nas prateleiras dos supermercados e servidos em restaurantes fast food.

A proporção de cidadãos americanos clinicamente obesos aumentou de 15% em 1980 para cerca de 40% em 2023. A obesidade está associada a vários problemas de saúde, incluindo doenças cardíacas, depressão, hipertensão, câncer e diabetes.

Mas o problema também é evidente na profusão de coisas com as quais nos cercamos.

Um em cada dez americanos tem tantas coisas que aluga depósitos, embora o tamanho médio das casas tenha triplicado nos últimos 50 anos. As ruas comerciais britânicas estão repletas de brechós cheios de roupas e bugigangas descartadas.

Mas o problema da abundância é mais grave no mundo digital, cujos líderes competem pela nossa atenção por meios justos ou injustos, porque seu negócio é vender essa atenção aos anunciantes.

E eles nunca nos deixam em paz. Notificações de e-mail surgem. Alertas de notícias piscam. Ofertas exclusivas aparecem. Sites de pornografia e jogos de azar nos atraem.

Crianças e adolescentes são particularmente vulneráveis a esse ataque digital: o adolescente médio nos Estados Unidos passa de seis a oito horas por dia olhando para telas, principalmente smartphones.

Essa torrente de conteúdo causa sérios danos à nossa saúde mental e intelectual, justamente por ser uma torrente.

Em The Anxious Generation (2024) (“A Geração Ansiosa”, no título em português), o psicólogo social Jonathan Haidt documentou que a chegada dos smartphones e das mídias sociais coincidiu com um aumento nos problemas de saúde mental entre os jovens, incluindo ansiedade, depressão, automutilação e até suicídio.

Um artigo recente do Financial Times, intitulado “Os seres humanos já ultrapassaram o pico da capacidade cerebral?”, reúne evidências preocupantes do declínio em leitura, matemática, concentração e capacidade de aprendizagem.

Em 2022, a proporção de americanos que relataram ter lido um livro no ano anterior caiu para menos da metade. O chamado “efeito Flynn”, pelo qual o QI médio vem aumentando há décadas, está se revertendo.

Notavelmente, muitas pessoas próximas ao Vale do Silício agora se manifestam contra as consequências da abundância digital que a indústria de tecnologia gerou.

Tristan Harris, ex-filósofo de produtos do Google, alerta que a competição por atenção cria uma “corrida para o fundo do tronco cerebral”.

Chris Anderson, ex-editor da revista Wired, diz, falando sobre o vício em internet, que “em uma escala entre doces e crack, está mais próximo do crack”. As escolas do Vale do Silício lideraram o caminho na proibição de smartphones.

Por que falar de uma “agenda antiabundância” para complementar a “agenda da abundância”?

Os formuladores de políticas já abordam manifestações específicas do problema do “excesso”: a Hungria tributa alimentos não saudáveis, o Chile coloca um rótulo de advertência preto em alimentos que contêm açúcar, sódio ou gorduras adicionadas e, graças ao trabalho pioneiro de Haidt, cada vez mais escolas proibiram telefones digitais.

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Há duas razões.

A primeira é que construir um futuro melhor depende tanto de aprender a dizer “não” quanto de aprender a dizer “sim”.

A segunda é que aprender a dizer “não” costuma ser mais difícil em uma sociedade comercial do que aprender a dizer “sim”.

Os problemas relacionados à abundância que listei têm algo importante em comum: eles representam o mercado funcionando de maneira eficiente.

Klein e Thompson se concentram em remover as restrições impostas pelo governo que impedem o mercado de suprir a demanda. Resumindo em uma frase, eles querem “um liberalismo que construa”.

Mas quando se trata de junk food ou estímulos digitais, as empresas estão fazendo exatamente o que foram projetadas para fazer: criar e satisfazer a demanda em profusão quase ilimitada.

As empresas têm sido muito bem-sucedidas em impedir que os governos as impeçam de produzir o que querem.

O mais trágico foi com a Lei de Reforma das Telecomunicações dos EUA de 1996, que isentou as empresas de internet da obrigação de policiar o conteúdo originado por usuários ou promotores independentes, por meio do que se tornaria a Seção 230 da Lei de Comunicações revisada, mesmo que tal conteúdo fosse obsceno, odioso, falso ou incendiário.

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Precisamos de mais regulamentação e tributação, e não menos: em outras palavras, uma agenda antiabundância que impeça as empresas de fazer o que bem entendem.

Precisamos reconhecer que a única maneira de impedir que as empresas produzam muito lixo é fazer exatamente o oposto de estimular ainda mais a abundância: ou seja, tributá-las, regulamentá-las, restringi-las e remover cláusulas de isenção de responsabilidade.

Nosso problema não é que temos regulamentado demais ou de menos; é que temos regulamentado as coisas erradas da maneira errada, criando uma abundância de lixo digital, por um lado, e uma escassez de moradia, por outro.

O que precisamos a longo prazo não é uma agenda de abundância nem uma agenda antiabundância, mas uma combinação dinâmica das duas. Chamemos isso de agenda de maturidade.

Os inimigos progressistas da abundância incentivam um tipo de infantilização, obrigando mais adultos a morar com seus pais.

Os sacerdotes da alta tecnologia da abundância incentivam um tipo diferente de infantilização, incentivando a autoindulgência e vendendo podridão cerebral.

Os dois se combinam para incentivar o investimento excessivo em entretenimento digital e coisas de baixa qualidade e o subinvestimento em coisas mais sólidas, como moradia, infraestrutura e virtude cívica, das quais depende a saúde da sociedade a longo prazo.

Esta coluna reflete as opiniões pessoais do autor e não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Adrian Wooldridge é o colunista de negócios globais da Bloomberg Opinion. Já escreveu para o The Economist e é autor de “The Aristocracy of Talent: How Meritocracy Made the Modern World”.

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