Conclave: escolha do novo papa testa o legado de Francisco e o papel da Igreja

‘O mundo está atento à eleição do novo papa e à mensagem que a Igreja transmitirá sobre o rumo que tomará nos próximos anos’, disse Nathalie Méndez, professora da Universidade dos Andes

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Bloomberg Línea — A eleição do novo papa definirá os rumos da Igreja Católica e colocará à prova o legado reformista e social do papa Francisco em um cenário marcado pela polarização, pelas crises sociais, pela fragmentação da globalização e pelo retorno do protecionismo.

A escolha também testará a capacidade da Igreja de se manter relevante diante dos desafios contemporâneos.

“O interesse por parte dos setores econômicos em saber quem será o novo pontífice pode ser interpretado como um certo temor diante da possível chegada de um papa que coloque forte ênfase na crítica da Igreja Católica ao capitalismo”, disse à Bloomberg Línea Hans Egil Offerdal, assessor de Assuntos Internacionais da Universidade de Bergen, na Noruega.

Embora essa seja uma crítica antiga da Igreja, baseada em sua doutrina social sobre o papel da economia na sociedade, ela pode se aprofundar ou se flexibilizar, dependendo do perfil do novo papa.

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“Imaginem um papa que proclame que quem está em situação de extrema necessidade tem o direito de tomar da riqueza alheia o necessário para si”, disse Offerdal, especialista em Teologias da Libertação e Doutrina Social da Igreja.

Nathalie Méndez, professora da Escola de Governo da Universidade dos Andes, na Colômbia, e especialista em liderança pública, disse que a eleição de um papa continua tendo grande impacto “não apenas por ele ser o guia espiritual de mais de 1,4 bilhão de católicos no mundo, mas porque a Igreja Católica pode transmitir mensagens poderosas ao mundo para promover o diálogo inter-religioso e liderar reflexões sobre temas que afetam toda a humanidade”.

A influência global da Igreja ficou evidente na presença de líderes mundiais de diferentes espectros ideológicos no funeral do papa Francisco, inclusive de alguns de seus críticos mais ferrenhos, como o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o presidente argentino, Javier Milei.

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“O mundo está atento à eleição do novo papa e à mensagem que a Igreja transmitirá sobre o rumo que tomará nos próximos anos”, disse Nathalie Méndez.

Segundo Méndez, o papel esperado do novo pontífice é, de certa forma, o de dar continuidade ao legado de Francisco, especialmente em temas como abertura ao diálogo, escuta, empatia e defesa dos mais vulneráveis.

Em um cenário tão polarizado, Méndez explica que o novo papa deverá seguir construindo pontes interculturais e inter-religiosas, além de continuar rompendo paradigmas. “Continua sendo relevante uma voz que convida à escuta e à compreensão do outro, em vez de fechar portas e julgar quem é diferente”, afirmou.

Legado do papa Francisco posto à prova

A Igreja Católica mantém uma tradição institucional e doutrinária de mais de dois mil anos, com relevância cultural, educacional e social incomparável entre as entidades religiosas.

No entanto, seus alicerces foram abalados pelos casos de pedofilia que levaram o papa Francisco a pedir perdão “por omissão”, no âmbito de sua política de tolerância zero diante desses abusos.

Preservar esse legado será crucial para manter a influência e a reputação da Igreja junto aos fiéis, à medida que os holofotes continuam a expor erros do passado.

Durante seus doze anos de pontificado, Francisco se destacou por promover o diálogo inter-religioso, por sua vocação em favor dos pobres e por iniciar uma série de reformas contra a corrupção enraizada na instituição.

O papa Francisco também deixou mensagens fortes sobre a necessidade de uma transformação profunda na Igreja.

Em sua primeira viagem como pontífice, em julho de 2013, ele visitou a ilha italiana de Lampedusa, epicentro da crise migratória na Europa, para demonstrar solidariedade aos migrantes.

Francisco foi um papa engajado em causas políticas e econômicas, crítico do capitalismo, e demonstrou preocupação com fenômenos emergentes como a inteligência artificial.

Ele também foi o primeiro pontífice a discursar em uma sessão conjunta do Congresso dos EUA, onde defendeu os migrantes, pediu o fim da pena de morte e cobrou ações em prol do meio ambiente e da redistribuição da riqueza.

“Do ponto de vista social e político, o principal legado do papa Francisco pode ser sintetizado em suas encíclicas sociais: Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, e Fratelli Tutti, sobre a fraternidade universal”, afirmou Alfonso Santiago, diretor da Escola de Governo da Universidade Austral, na Argentina.

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Ele também destaca o valor da Declaração de Abu Dhabi — assinada com a maior autoridade doutrinária do Islã — e do recente Documento Dignitas Infinita, sobre a dignidade da pessoa humana e suas principais ameaças atuais.

Os desafios do novo papa

O novo papa enfrentará múltiplos desafios, tanto estruturais — com escândalos recorrentes de corrupção e pedofilia — quanto de comunicação com os fiéis, especialmente os jovens.

Do ponto de vista prático, segundo a analista Nathalie Méndez, caberá ao novo pontífice a tarefa de continuar promovendo ordem na Igreja e fomentar espaços de proximidade e empatia entre as pessoas.

Ele terá diante de si um mundo que, apesar de hiperconectado, revela relações humanas cada vez mais frágeis.

Não é apenas a influência da Igreja que será testada, mas também sua missão diante dos tempos turbulentos que o mundo enfrenta.

“É verdade que a Igreja tem poder terreno, econômico e político”, disse Egil Offerdal. “E é justamente quando ela se apega a esses interesses que perde sua essência. A verdadeira influência da religião não está no poder, mas na sua capacidade de nos tornar mais humanos e de criar sociedades onde todos possam ter uma vida digna e desfrutar do amor.”

As finanças do Vaticano

As finanças do Vaticano serão outro grande desafio para o novo papa.

A gestão financeira da Igreja Católica ganhou destaque durante o pontificado de Francisco, que promoveu uma “limpeza financeira” na Santa Sé.

Segundo dados divulgados pelo jornal italiano La Repubblica, a Santa Sé enfrentou um déficit de cerca de 83 milhões de euros nas contas de 2023 — cinco milhões a mais que em 2022.

Essa preocupação esteve presente nas recentes congregações de cardeais, de acordo com Wilmar E. Roldán Solano, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Javeriana, na Colômbia.

Para o próximo papa, administrar os bens da Igreja será um desafio central que vai além do aspecto técnico. Segundo Roldán, será necessário ter uma visão integral que assegure que os recursos estejam a serviço da evangelização e de uma economia voltada para os mais excluídos.

Roldán ressalta que esse tema possui duas vertentes principais: compreender o estado atual das finanças do Vaticano e definir novas políticas que promovam o bem-estar, a missão evangelizadora e uma Igreja pobre — não como slogan, mas como estilo de vida evangélico, conforme proposto por Francisco.

Poder de influenciar debate

“O papa exerce uma liderança tripla no mundo”, afirma Alfonso Santiago.

De um lado, é a autoridade suprema em temas espirituais e doutrinários para os católicos, fortalecendo-os na fé.

Por outro, cabe-lhe governar a Igreja Universal, como sucessor de São Pedro, em comunhão com todo o Colégio Episcopal.

Além disso, é uma das autoridades religiosas e morais mais importantes no cenário global.

“Com essa tríplice função, ele pode iluminar as consciências dos fiéis, dos cidadãos e dos governantes diante dos grandes desafios e dilemas éticos do nosso tempo: convivência pacífica entre as nações, centralidade e dignidade da pessoa humana, direitos humanos, justiça social, pobreza, ecologia, impacto das novas tecnologias, entre outros”, disse Santiago.

O novo papa herdará de Francisco uma trajetória de expansão do catolicismo em regiões como Ásia e África, ao mesmo tempo em que a Igreja consolida sua presença em vários países da América Latina e da Europa.

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Em uma instituição que continua sendo altamente tradicionalista, o novo pontífice poderá aproveitar essas novas (e antigas) audiências para amplificar sua voz e consolidar novas plataformas de diálogo.

Segundo Nathalie Méndez, o novo papa poderá continuar a marcar posição com uma abordagem humana e empática em temas como o relacionamento com comunidades historicamente excluídas, o avanço tecnológico, o papel das mulheres na liderança da Igreja e as mudanças climáticas.