Por que o próximo Papa será italiano, não importa qual seja sua nacionalidade

A história do papado está intrinsecamente ligada à Itália, desde os Estados Papais até a criação da Cidade do Vaticano como um país independente em 1929. E a relação entre eles ainda se reflete nos dias atuais

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Bloomberg Opinion — Já faz quase meio século que as perguntas não podem ser respondidas com veracidade: “O Papa é italiano?”

Durante esse tempo, a Igreja Católica Romana foi liderada por um polonês, um alemão e um argentino – a mais longa linha consecutiva de não italianos desde que sete franceses ocuparam o trono de São Pedro. E isso foi durante o período de 67 anos no século XIV, quando o papado foi transferido para Avignon, na França.

Até a eleição de João Paulo II em 1978 – nascido Karol Wojtyla e arcebispo de Cracóvia –, houve 455 anos de papas italianos.

Enquanto a Santa Sé se prepara para o conclave que começa nesta quarta-feira (7) para eleger um sucessor para o falecido Papa Francisco, uma lista não oficial, mas autorizada, de 22 papabili (papas aptos) inclui apenas cinco cardeais italianos.

De fato, os principais porta-estandartes das alas liberal e conservadora da Igreja são do Sudeste Asiático e da África Ocidental, respectivamente: o cardeal Luis Antonio Tagle, das Filipinas, e o cardeal Robert Sarah, da Guiné.

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Mesmo que um italiano seja ungido, ele vai liderar uma das organizações mais diversificadas e globalizadas, religiosas ou não: o papa é o chefe espiritual e moral designado de quase 1,4 bilhão de pessoas em todo o mundo que se identificam como católicas. A Itália não é nem mesmo o país católico mais populoso. Esse seria o Brasil.

E, no entanto, “O Papa é italiano?” ainda é uma pergunta pertinente.

A chance de ganhar o papado aumenta com a capacidade de falar italiano (tanto Tagle quanto Sarah são fluentes). O Papa João Paulo II, que reinou de 1978 a 2005, era famoso por falar oito idiomas sem esforço, inclusive italiano. Seus sucessores, Bento XVI e Francisco, também falavam italiano.

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Bento foi um dos pilares da burocracia do Vaticano por muito tempo e falava um italiano fluente, com toques de sotaque alemão.

Francisco era orgulhosamente argentino, mas, como muitos de seus compatriotas, era descendente de imigrantes italianos e falava o idioma de seus ancestrais da Ligúria. “O papa fala italiano?” ainda será um ponto crítico para o novo pontífice. Há vários motivos para isso.

Primeiro, o papa é tecnicamente o bispo de Roma – o sucessor de São Pedro, o membro sênior dos 12 discípulos originais de Jesus. Como tal, suas responsabilidades incluem ministrar aos paroquianos de Roma.

Ele pode nomear e nomeia auxiliares para lidar com essas tarefas sacerdotais, mas ainda precisa fazer mais do que aparições ocasionais em seu domínio imediato.

Em segundo lugar, o papa é o governante autocrático de um território independente encravado na capital da Itália, o remanescente de uma superpotência europeia que lutou contra reis, imperadores e sultões.

Ele tem defendido essa prerrogativa terrena com proeza maquiavélica ao longo dos séculos, apenas para manter a promessa que Jesus fez a Pedro: “Em verdade te digo que tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu”.

Foi esse direito dado por Deus de elevar ao paraíso ou condenar ao inferno que ajudou a desencadear as cruzadas séculos atrás - e talvez tenha ajudado os poloneses a enfrentar Moscou no final da Guerra Fria e os filipinos a derrubar uma ditadura em 1983.

A existência do Vaticano como um país envolve uma política real muito mais suja.

À medida que a Itália moderna surgiu com a unificação da península no século XIX, os Estados Papais – governados diretamente pelo pontífice desde o século VIII – perderam lentamente propriedades até que Pio IX, cujo reino abrangia 3 milhões de súditos e um exército de 15.000 soldados, viu-se praticamente barricado na área ao redor da colina do Vaticano em Roma, onde fica a Catedral de São Pedro.

Ele se recusou a reconhecer o novo estado italiano em um impasse que duraria os quatro papados seguintes.

Somente em 1929, Pio XI e Benito Mussolini assinaram um tratado que criou a Cidade do Vaticano como um país separado, dando ao papado poderes terrenos mais uma vez em troca do reconhecimento papal da Itália moderna e de uma compensação financeira pela perda de seus territórios. Nesse sentido histórico, o papado moderno é inseparável da Itália.

A piada de mau gosto da Casa Branca sobre a IA, que imaginou o presidente dos EUA como o próximo papa, pode de fato contribuir para a política do conclave – dificultando a ascensão de um cardeal americano ao trono papal.

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A Igreja ainda se lembra do antigo papado de Avignon como uma época em que os pontífices desfrutavam de menos poder, tendo ficado sob o domínio dos monarcas franceses.

É improvável que os cardeais modernos elejam um pontífice que possa ser manipulado por Washington, muito menos pelo próprio presidente americano – que, até onde sei, não fala italiano fluentemente.

De qualquer forma, o entrelaçamento entre a Itália e o papado continuará. Toda essa crueldade histórica envolvida resultou, ironicamente, em uma espécie de círculo virtuoso.

O Vaticano, com espaço físico e independência garantidos pelo Estado italiano, continua sendo o guardião de alguns dos maiores tesouros da arte e da arquitetura italianas.

E, à medida que a Igreja Católica se tornou mais global, toda essa linda filigrana italiana se tornou parte do soft power projetado pela Santa Sé – um carisma inextricável da Itália.

Muito se fala em separar o papado de suas raízes europeias e italianas à medida que a igreja se torna mais africana, asiática e latino-americana.

Isso será difícil.

Afinal de contas, é a Igreja Católica Romana.

E ela sempre foi capaz de desempenhar um papel duplo. Ao longo dos séculos, os papas falaram urbi et orbi – expressão latina que significa “para a cidade e para o mundo”, ou seja, tanto para Roma quanto para o planeta.

O próximo papa pode vir de fora da Itália – mas ele terá que se tornar italiano.

Esta coluna reflete as opiniões pessoais do autor e não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

Howard Chua-Eoan é colunista da Bloomberg Opinion e escreve sobre cultura e negócios. Anteriormente, atuou como editor internacional da Bloomberg Opinion e foi diretor de notícias da revista Time.

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