Suíça sem neve? Mudança climática deve pautar discussões em Davos

Todos os anos, a cidade de Davos sedia as discussões sobre o cenário econômico mundial, mas talvez seja necessário abordar também o clima

Cidade que deveria ter paisagem clara pela neve ficou marcada pelo verde das árvores e o marrom da grama seca devido às temperaturas mais altas que o normal
Por Akshat Rathi - Hugo Miller
15 de Janeiro, 2023 | 08:21 AM

Bloomberg — Na semana antes de Davos receber, como todos os anos, o Fórum Econômico Mundial, a maior questão não é o que pode ser discutido entre líderes empresariais e políticos, mas se haverá neve suficiente para esquiar.

Apesar da altitude de 1.560 metros, a rara onda de calor no inverno deste ano fez com que a cidade suíça passasse por temperaturas bem superiores às congelantes no início de janeiro, com suas encostas montanhosas cobertas de grama seca e transeuntes que passeavam com seus cães. A neve chegou bem a tempo da chegada dos visitantes da elite, cobrindo o centro de conferências com a familiar camada branca. E deve nevar ainda mais. Mas 2023 não é um ano esquisito: é um sinal do que está por vir na região de Davos, onde a atmosfera está aquecendo mais rápido do que na maior parte do planeta.

A cidade não é apenas palco de discussões de alto nível sobre o mundo em mudança, é o lar de uma estação meteorológica que contém a mais longa série de dados diários de alta altitude e profundidade de neve. Os cientistas descobriram que as tendências ali registradas são replicadas pelos Alpes. Imagens de satélite mostram que a cobertura de neve no verão caiu 10% nos últimos 40 anos. Não parece muito, até que olhamos para a profundidade da neve que se acumula durante o inverno.

Em comparação com 1971, quando foi realizada a primeira reunião do Fórum Econômico Mundial, o nível da neve diminuiu em média mais de 40%. Quando a neve desaparece, ela é substituída por árvores, o que, na verdade, não é algo bom. A folhagem escura absorve o calor do sol que antes era refletido pela neve branca. Isso causa ainda mais aquecimento, segundo Sabine Rumpf, professora da Universidade da Basileia, na Suíça, o que coloca em movimento um loop de feedback negativo e acelerando o aumento da temperatura.

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Foto: Jason Alden/Francesca Volpi/Bloombergdfd
Foto: Simon Dawson/Francesca Volpi/Bloombergdfd

“Espero que seja um verdadeiro choque de realidade” para as autoridades de todo o mundo, diz Gail Whiteman, professora de sustentabilidade na Exeter Business School no Reino Unido. “A Suíça no inverno deve ter neve. Não é só porque não é possível esquiar tanto.

Toda a cadeia da biodiversidade muda, porque as árvores começam a pensar que é primavera, e as moscas também”. Apesar de décadas de mudanças incrementais, os riscos de um planeta em aquecimento não eram uma prioridade para a elite mundial até recentemente. Exceto durante a pandemia, o Fórum Econômico Mundial reuniu presencialmente líderes empresariais e chefes de estado todos os anos desde 1971.

Este ano, mais de um terço das discussões na agenda oficial estão ligadas à mudança climática, juntamente com a saúde da economia global e o delicado estado da geopolítica. Mas ao observarmos para os resumos executivos dos anos 2010, a primeira menção ao clima ocorreu apenas em 2014.

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Mesmo essa mudança exigiu anos de esforço para além da sala de conferências, Whiteman disse ao podcast Zerdo, da Bloomberg Green, para convencer os líderes empresariais e políticos de que eles estavam subestimando os riscos da mudança climática. Whiteman dedicou sua carreira a trazer as ciências naturais para as salas de conselhos corporativos. Depois de passar um tempo no Ártico canadense, que está aquecendo muito mais rápido que outras partes do mundo, ela estava determinada a levar a mensagem de urgência a Davos. O lema era “o que acontece no Ártico não fica no Ártico”.

Mas foi uma batalha difícil.

Sem as credenciais necessárias para passar pelos seguranças no Centro de Congressos de Davos, e perplexa com o custo do aluguel na cidade, Whiteman teve a ideia de construir uma “base”, assim como fazem os alpinistas para escalar o Everest (parte de outra emblemática cadeia montanhosa que está passando por um derretimento glacial sem precedentes).

Em 2017, ela montou um tipo de tenda usada pelos exploradores polares a uma pequena distância do local do evento, que tinha dupla função de espaço de apresentação durante o dia e quarto à noite.

“Estávamos muito gratos por qualquer jantar que alguém nos desse durante as semanas que passamos em Davos”, diz Whiteman. A iniciativa funcionou, e mais de 100 pessoas apareceram no primeiro ano, nascendo então o Arctic Basecamp.

Foto: Francesca Volpi/Bloombergdfd

Durante as reuniões que se seguiram, a tenda tornou-se o lar de cientistas e ativistas climáticos que nunca tinham ouvido falar de Davos antes ou não tinham dinheiro para ir até lá. Sua principal mensagem foi que o que acontece nas extensões congeladas da Terra tem um impacto em todo o mundo, desde a elevação do nível do mar até a mudança dos padrões de tempestade. A onda de frio norte-americana que derrubou as temperaturas no Texas em dezembro e o Ano Novo excepcionalmente quente que a Europa central e ocidental viveram estão ligados a problemas no vórtice polar causadas pela mudança climática.

Na linguagem de Davos, no entanto, o derretimento do gelo glacial tem repercussões econômicas monumentais. A produtividade de todo o trigo do mundo está diretamente ligada às temperaturas nos polos, diz Whiteman, dando apenas um exemplo dos laços que existem em todo o planeta. Na base de Whiteman, cientistas informam os líderes empresariais sobre o que estes riscos significam para seus resultados e por que ajudar o mundo a atingir os objetivos climáticos é de seu próprio interesse financeiro.

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“Quando tocamos sua humanidade, e combinamos isso com o interesse próprio às vezes, as pessoas podem tomar a dianteira”, diz Whiteman. “Eu já vi isso acontecer muitas vezes”.

Mas ela também é a primeira a reconhecer que o progresso na conscientização será em vão se as emissões não caírem. Em 2022, o mundo bateu um recorde de gases estufa, liberados após a crise energética que levou alguns governos a voltarem a queimar carvão.

Ainda assim, cada reunião que Whiteman tem com as pessoas poderosas que se reúnem em Davos lhe dá outro motivo de otimismo. Em 2018, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, acompanhado por sua equipe de segurança, passou e perguntou a Whiteman, segundo ela conta: “que diabos você está fazendo aqui com esta tenda? Você está dormindo aqui?” Ela o recebeu e falou sobre a mudança climática no Ártico, mostrando amostras de núcleos de gelo que nos fornecem provas primárias de que o aquecimento que observamos hoje é sem precedentes em mais de 800 mil anos.

“Davos dá a oportunidade de ter esses momentos incomuns”, diz Whiteman, “e apenas falar de ciência ao poder”.

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--Com a colaboração de Gem Atkinson, Maria Wood, Oscar Boyd e Christine Driscoll.

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