Opinión - Bloomberg

Como a FTX se aproveitou da confiança de capitalistas de risco

A indústria e outros investidores sofisticados forneceram o financiamento, a aprovação e a falta de escrutínio que permitiram o crescimento do império de Sam Bankman-Fried

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Tempo de leitura: 5 minutos

Bloomberg Opinion — A narrativa que surgiu nos dias após o colapso do FTX, a exchange de US$ 32,5 bilhões no centro do império cripto de Sam Bankman-Fried, foi que ela tinha que ser o resultado de algum esquema altamente sofisticado e nefasto que só veio à tona após uma série de infelizes eventos. Afinal de contas, algumas das mentes mais inteligentes do mundo financeiro foram atraídas: Sequoia Capital, Tiger Global Management e o Ontario Teachers’ Pension Plan, para citar alguns.

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É nisso que os fundos de capital de risco e de pensão que investiram na FTX querem que você acredite. Que foram vítimas involuntárias de uma saga infeliz e complexa que ninguém poderia ter imaginado. Pois bem, não acredite. Embora ainda não saibamos todos os fatos, eles ainda carregam um pouco de culpa. Sem seu financiamento contínuo, aprovação e confiança, a FTX nunca teria crescido da forma como cresceu. Seu descuido significa que os clientes da FTX estão bilhões de dólares mais pobres – e dificilmente vão recuperar essa quantia.

Entrevistas de Bankman-Fried nos últimos dias sugerem que o fracasso da FTX está ligado à pura incompetência. Foi uma empresa destinada ao fracasso. Em um negócio em que a gestão de riscos é a principal prioridade, Bankman-Fried agora diz que não havia ninguém na empresa responsável por isso. “Isso é muito vergonhoso”, disse ele ao público no evento do New York Times DealBook na quarta-feira (30). E não para por aí. A FTX parece não ter algo remotamente parecido com uma diretoria e subcomitês convencionais. A Bloomberg News relata que não se sabe quantos funcionários de compliance a FTX realmente tinha. Em um processo de recuperação judicial, o tribunal indicou que o CEO John J. Ray III disse que a FTX não tinha sido capaz de fornecer uma lista completa de quem trabalhava na empresa e em que capacidade, acrescentando que as linhas de responsabilidade não eram claras.

Então, como as empresas de capital de risco e outros chamados investidores sofisticados não previram o ocorrido? O que as empresas relataram deixa mais perguntas que respostas. Os principais parceiros da Sequoia, a mais experiente de todas as empresas de capital de risco para empresas como Apple (AAPL), Google (GOOGL), Cisco Systems (CSCO) e Airbnb (ABNB) desde sua fundação em 1972, defenderam due diligence em seus investimentos de US$ 214 milhões na FTX e em entidades relacionadas. Eles disseram aos investidores em uma recente teleconferência que os funcionários analisaram as demonstrações financeiras e questionaram várias vezes o relacionamento entre a FTX e a Alameda Research, empresa de trading que Bankman-Fried também fundou e que supostamente tomou emprestado e perdeu o dinheiro de clientes. No futuro, eles asseguraram aos investidores que a Sequoia poderia obrigar as startups a usar uma das auditorias Big Four.

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Espere aí. A Sequoia investiu em uma empresa de valuation de mais de US$ 30 bilhões e não exigiu que as finanças da empresa fossem examinadas por uma empresa de contabilidade respeitável? Sim, é isso mesmo. Quanto à alegação de que fundos da FTX estavam sendo usados para financiar as atividades da Alameda, os sócios da Sequoia disseram que tinham certeza de que isso não estava acontecendo e que ambas eram entidades separadas. Novamente, mesmo uma auditoria superficial por parte de qualquer empresa de contabilidade licenciada, principalmente uma das Big Four, teria descoberto o contrário.

E havia alguns alertas. O potencial para conflitos de interesse entre a FTX e a Alameda e a falta de um conselho de administração adequado eram apenas os mais óbvios. O fundo de pensão para professores de Ontário, que investiu US$ 95 milhões na FTX, chamou sua due diligence de “robusta” e disse que “nenhum processo de due diligence pode descobrir todos os riscos, especialmente no contexto de um negócio de tecnologia emergente”. É verdade, mas o esforço não pode implicar apenas em fazer uma pergunta e depois acreditar no fundador. Confiar, mas verificar. Mesmo um escrutínio básico teria exposto as deficiências nas operações da FTX.

A pergunta óbvia é: se eles não viram alertas na FTX, o que mais estão deixando de ver? Boa pergunta. Como muitas outras, a indústria de capital privado tem sido a principal beneficiária de uma era de dinheiro fácil. Os fundos foram inundados com mais dinheiro do que eles podem usar, criando complacência, o que então alimentou as apostas em empresas que seriam mais complicadas em uma era “normal”.

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A melhor forma de responsabilidade é o mercado. Empresas de capital de risco que dinheiro de clientes na FTX deveriam ser obrigadas a prestar mais atenção em novos influxos – mesmo a poderosa Sequoia. Isso significa demonstrar processos específicos e robustos de due diligence que vão além do sentimento instintivo de um sócio sobre um empreendedor ou uma ideia. Insistir que todo investimento de capital de risco está sujeito a algum tipo escrutínio de uma consultoria independente que tenha que atestar seu trabalho, assim como um CEO de empresa pública ou de auditoria tem que atestar resultados financeiros relatados, seria um bom começo. E que tal cobrar a taxa de due diligence do investidor final, para deixar claro quem a empresa deve servir?

É claro que nem toda startup vai ser bem-sucedida. Mas há uma diferença entre uma startup com problemas por causa da mudança das condições de mercado ou da má sorte e o fracasso devido a uma governança terrível, como vimos com a FTX. Não se pode criticar as empresas de capital de risco pelo primeiro caso, mas sim pelo segundo. E os que sofrem não são apenas os ricos que investem com empresas de VC, mas os aposentados e trabalhadores regulares que participam dos planos de pensão que fornecem fundos para as empresas de capital de risco.

As empresas de capital de risco não foram diretamente responsáveis pelo colapso da FTX, mas certamente compartilham a culpa.

Esta coluna não reflete necessariamente a opinião do conselho editorial ou da Bloomberg LP e de seus proprietários.

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Robert Burgess é o editor executivo da Bloomberg Opinion. Anteriormente, foi o editor executivo global responsável por mercados financeiros na Bloomberg News.

Chris Hughes é um colunista da Bloomberg Opinion que cobre negócios. Trabalhou anteriormente para a Reuters Breakingviews, bem como para o Financial Times e o jornal Independent.

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