Intrigas, traições e nazismo: as origens da família fundadora da Porsche

Descendentes bilionários do homem que construiu a Porsche estão prestes de se tornar a família mais poderosa do indústria automotiva. IPO avaliou a lendária marca em US$ 73 bilhões

A Porsche abriu capital na Bolsa de Stuttgart, na Alemanha; história da lendária marca revela rivalidades na família do seu fundador e os elos com o nazismo
Por Hannah Elliott
08 de Outubro, 2022 | 04:06 PM

Bloomberg — Esqueça os Quandts da BMW, os respeitados Agnellis da Fiat e o clã Ford dos EUA. Os descendentes bilionários do homem que fundou a Porsche estão a um passo de se tornar a família mais poderosa da indústria automobilística.

A Porsche AG abriu seu capital em 29 de setembro, captando US$ 9,1 bilhões em receitas para o grupo controlador Volkswagen AG, com uma avaliação total de US$ 73 bilhões. O negócio complexo superou os fortes ventos contrários do mercado, tornando-se a maior oferta pública inicial da Europa em mais de uma década.

O IPO devolve à família um ativo que há muito cobiçava: o poder de veto no conselho de supervisão da Porsche, que permite que a empresa determine seu destino sem ter que responder aos outros acionistas relevantes da VW.

Os clãs Porsche e Piëch, por meio de sua empresa de investimentos Porsche SE, já detinham 53,3% dos direitos de voto e 31,9% do capital total da VW. Isso significa que a Porsche SE controla efetivamente toda a VW, exceto por um poder de veto de 20% mantido pelo Estado da Baixa Saxônia, de acordo com a Bloomberg Intelligence. A Porsche agora também possui 12,5% das ações oferecidas na Porsche AG e 25% mais 1 ação do capital votante da Porsche AG. É assim que eles são poderosos.

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“Estamos separando os dois negócios com muita clareza”, disse Oliver Blume, CEO do Grupo Volkswagen e da Porsche AG, à Bloomberg no mês passado. Blume não está ligado à família. “Não teremos conflito no meio, então vai funcionar.”

Esculturas com modelos Porsche 911 na fábrica da montadora em Stuttgart, na Alemanhadfd

Rivalidade e nazismo

Ainda assim, se há alguma palavra que descreva os Porsche-Piëch, é conflito. Com décadas de amarga rivalidade e intriga, traições e nazismo, a história do legado Porsche-Piëch se desenrola como “Succession” [série da HBO sobre bilionários e sucessão familiar], mas em alemão. Tudo começou com Ferdinand Porsche, o engenheiro preferido de Adolf Hitler, que fundou sua empresa de mesmo nome em Stuttgart, Alemanha, em 1931.

Hoje, o patriarca Wolfgang Porsche, neto de 79 anos do fundador, está chegando ao fim de sua influência como presidente do conselho de supervisão da Porsche SE e da Porsche AG. Pessoas a par dos acontecimentos estão acompanhando de perto para ver quem pode assumir a liderança nesta família austro-germânica com um passado tão atormentado quanto prestigioso. Ninguém aparece como favorito para esse papel.

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Ferdinand Karl Piëch e sua segunda esposa, Ursula, em Berlim em 2013dfd

O nascimento da lenda

Austríaco de nascimento, o fundador da empresa, Ferdinand Porsche, desenvolveu tanques militares nazistas, a bomba V-1 Flying e o VW Beetle - o último em resposta a um pedido de Hitler. Porsche fundou sua empresa homônima com o genro Anton Piëch e outros financiadores; Josef Stalin era um cliente em potencial, embora Porsche o tenha recusado por causa da barreira do idioma. Carros raros, como o controverso Type 64, criado para demonstrar o poder nazista, surgiram das primeiras colaborações da Porsche.

Em 1945, ele estava sentado em uma prisão francesa por crimes de guerra cometidos como oficial da SS [polícia nazista] durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Porsche morreu em 1951, seus bens foram divididos igualmente entre seus dois filhos, Ferry Porsche e Louise Porsche, que se casou com Anton Piëch. (É assim que metade da família Porsche leva o nome Piëch, que aqueles com o nome Porsche há muito usam como motivo de escárnio para irritar os primos.)

Ferdinand e seu filho Ferry Porsche desenvolveram carros e tecnologias durante anos com a Volkswagen, fundada em 1937 pela Frente Trabalhista Alemã do Partido Nazista. A Porsche possui diversas partes da VW desde que foi privatizada em 1960. Em 1993, o membro da família Porsche Ferdinand Karl Piëch assumiu o comando da VW e permaneceu como presidente até 2015.

Ferry, que também foi preso por atividade de guerra com a SS [polícia nazista], manteve a empresa Porsche funcionando enquanto seu pai estava na prisão. Ele foi fundamental para construir a empresa como uma fortaleza à prova de aquisição que é hoje. Em 1948, ele e Anton Piëch se reuniram para lançar as bases para os planos que acabariam se tornando a “Lei VW” de 1960, que dá à Baixa Saxônia 20% das ações ordinárias da VW e é classificada como um acionista minoritário com poder de veto. A lei, em teoria, protege a empresa de uma aquisição hostil. Essa regra ainda se mantém forte.

Ferry desenvolveu o primeiro Porsche amplamente reconhecido, o Beetle 356, e tornou-se presidente do conselho de administração da Porsche; ele foi presidente honorário do conselho até sua morte em 1998. Sua irmã também estava envolvida na administração do negócio, embora em menor grau. Foi o reinado de seu filho Ferdinand Karl Piëch que durante décadas ditou o tom para o crescimento da Volkswagen moderna.

Oliver Blume (à dir.) , CEO da Volkswagen AG, e Lutz Meschke, CFO da Porsche AG, tocam o sino durante a cerimônia de abertura de capital da Porsche na Bolsa de Frankfurtdfd

Rixa familiar

Com sua morte, Ferdinand Porsche deu ao filho Ferry e à filha Louise e seus quatro filhos, cada um, 10% de participação. A partir daí, as famílias divergem tão acentuadamente quanto a história bíblica de Isaque e Ismael. A terceira geração da saga Porsche-Piëch trouxe a luta pelo controle da Porsche (e aumento do poder da VW) a novos patamares dramáticos.

Louise mandava seus filhos para internatos militares, enquanto Ferry mandava os seus para escolas Waldorf mais descontraídas que se concentravam na criatividade. O contraste entre as duas filosofias alimentou o conflito já hipercompetitivo entre os indivíduos vingativos da família.

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“Artesanato, crochê e canto”, é como os Piëchs menosprezaram a experiência Waldorf de seus primos, em comparação com seu próprio treinamento rigoroso. As disputas atingiram o auge no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, quando quatro descendentes principais estavam todos trabalhando na Porsche: o filho de Ferry, o designer Ferdinand Alexander Porsche (também conhecido como Butzi); seu irmão, o chefe de produção Hans-Peter Porsche; o filho de Louise, chefe de distribuição Hans Michel Piëch; e seu irmão, chefe de pesquisa e desenvolvimento Ferdinand Karl Piëch.

Uma reunião familiar e uma tentativa de reconciliação liderada por Ferry em Zell am See, na Áustria, em 1970, serviram apenas para aprofundar a divisão. (No início dos anos 1980, Ernst Piëch, outro dos filhos de Louise, tentou vender sua parte das ações da família para investidores árabes, mas foi impedido quando a família levantou 100 milhões de marcos alemães para bloquear o negócio).

A família decretou a partir de 1972 que nenhum membro da família poderia trabalhar no futuro na Porsche, que seria administrada apenas por executivos externos. Butzi Porsche fundou a Porsche Design como uma operação externa, que produzia óculos de sol, esquis e relógios, entre outros colecionáveis.

(Em 1964, Butzi havia revelado o item mais importante da fábrica da Porsche, o carro esportivo 911. Hoje, o 911 contribui com 30% dos lucros da empresa, embora represente apenas 14% do volume de vendas.)

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Ferdinand Karl Piëch, primo de Butzi, também foi forçado a cumprir a regra familiar de que nenhum membro deveria trabalhar na Porsche. Depois de ser demitido de seu emprego na Porsche, o famoso descendente disléxico galgou posições na Audi nas décadas de 1970 e 1980, desenvolvendo ícones como o sedã Audi 100 e o carro de rali Audi Quattro. Em 1993, ele se tornou presidente e CEO do Grupo VW, que incluía seu empregador anterior, Audi, e ao qual acrescentou Lamborghini, Bentley e Bugatti em aquisições.

Piëch também lançou um contra-ataque lendário à Porsche depois que seu primo Wolfgang começou discretamente a adquirir ações da VW no início dos anos 2000 para tentar uma aquisição. Depois que a crise financeira de 2008 deixou Wolfgang Porsche desesperado por dinheiro e incapaz de completar o golpe, Piech virou a mesa e assumiu a Porsche para a VW em 2009.

O ataque era típico de Piëch, que já havia roubado o coração de Marlene Porsche, esposa de seu primo Gerhard Porsche. Marlene trocou Gerhard por Piëch, criando um potencial desequilíbrio de poder na família porque Marlene manteve uma parte das ações de Gerhard depois que ela se divorciou dele. Marlene e Piëch nunca se casaram; eles tiveram dois filhos. Ao todo, Piëch gerou 13 filhos de quatro mulheres diferentes. Um estudo publicado na Frontiers in Psychology em 2021 descreveu sua personalidade como “representada principalmente pelos padrões assertivos-sádicos, confiantes-narcisistas e paranóicos-parafrênicos”.

Piëch deixou sua posição como presidente da VW em 2015, justo na hora de deixar seu sucessor e protegido, Martin Winterkorn, assumir a culpa pelo escândalo de emissões de diesel que custou à empresa mais de US$ 30 bilhões. Antes de sua morte em 2019, a revista alemã Der Spiegel descreveu a cultura da empresa que Piëch havia criado na VW como “Coreia do Norte sem os campos de concentração”.

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Desde então, as coisas nos negócios da família mudaram – pelo menos um pouco, diz Michael Dean, analista automotivo da Bloomberg Intelligence: “É muito mais cordial na família agora que [Ferdinand] Piëch se foi”. Com o tempo de Wolfgang Porsche chegando ao fim, a questão é quanto tempo vai durar.

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