Apertando os cintos: segue onda de demissões em startups bilionárias

Os unicórnios Klarna e Olist anunciaram cortes de pessoal nesta semana em meio à turbulência do mercado de tecnologia

Os unicórnios Klarna e Olist anunciaram cortes de pessoal nesta semana em meio à turbulência do mercado de tecnologia
25 de Maio, 2022 | 04:15 AM

Bloomberg Línea — A semana começou com mais notícias de demissões em empresas de tecnologia. Na segunda-feira (23), a startup argentina de criptomoedas Buenbit disse que estava demitindo metade de sua equipe por causa do “novo contexto global”. A Klarna, fintech mais valiosa da Europa, informou que iria demitir 10% da equipe. E, no Brasil, o unicórnio do e-commerce Olist cortou pelo menos 60 funcionários, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto.

Os cortes de pessoal vêm na esteira de uma situação macroeconômica mais desafiadora, com os bancos centrais pelo mundo subindo as taxas de juros para conter a inflação. No cenário micro, cada modelo de negócio está sofrendo com suas especificidades. A Klarna, empresa sueca de Buy Now, Pay Later, por exemplo, viu seus custos de empréstimos subirem para o nível mais alto já registrado, com o aumento das taxas atingindo a avaliação da dívida e do patrimônio da empresa. Na América Latina, a colombiana Addi também opera nesse modelo de negócio.

Professor da Universidade de Berkeley, na Califórnia, Jerome Engel é especialista em inovação, empreendedorismo e venture capital. Em entrevista à Bloomberg Línea, ele explica que os efeitos da pandemia, aliada à inflação, problemas na cadeia de suprimento e a guerra na Ucrânia, que impactaram o venture capital, serão sentidos nos países emergentes com um certo atraso em relação ao que foi visto na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, ele também acredita que a América Latina, por estar na ponta da corda, levará mais tempo para se recuperar desse colapso, já que as estruturas dos mercados dos países desenvolvidos são mais fortalecidas.

Engel sugere que os empreendedores devem buscar alianças corporativas e se segurar em suas fortalezas, com os clientes que realmente importam e trazem valor estratégico para o negócio. “Em vez de levantar a Série B, talvez esses empreendedores precisem focar em dois clientes-chave. As taxas de juros vão continuar subindo, mas se você conseguir fundar uma empresa agora, quando os mercados voltarem você estará pronto”, disse.

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Olist: Preparação para captação que pode não vir

No Brasil, a provedora de e-commerce Olist atingiu o status do valuation bilionário no final do ano passado após uma rodada Série E liderada pelo fundo de private equity Wellington Management com participações do Corton Capital, Globo Ventures, Goldman Sachs, Valor Capital e SoftBank.

O CEO do Olist, Tiago Dalvi, disse que os cortes foram uma reorganização para que a empresa pudesse continuar crescendo de forma eficiente e seguir investindo no que é estratégico para a empresa, como o marketplace, a logística e a plataforma de e-commerce. Segundo o executivo, nenhum projeto será descontinuado.

Para Dalvi, o Olist não depende de novas rodadas de captação. “Neste momento a gente tem todo o capital de que a gente precisa para seguir investindo e entregar quase o dobro de crescimento em receita neste ano”, afirmou Dalvi, em entrevista à Bloomberg Línea. A estratégia de apertar os cintos veio por causa do que Dalvi definiu como “um cenário macroeconômico ultra-desafiador, muito mais incerto se comparado ao que vimos no ano passado”.

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Recentemente, o SoftBank, um dos principais investidores do Olist, publicou prejuízo de US$ 20 bilhões em seu Vision Fund, que soma o Vision Fund 1, 2 e o Latin America Fund. “Este ano é totalmente diferente, não há visibilidade quanto à disponibilidade de recursos no futuro. Tudo isso catalisou o movimento [de cortes] que a gente já planejava fazer e já vinha discutindo com o conselho desde o ano passado”, disse o executivo.

Segundo Dalvi, os cortes fazem parte de um movimento de readequação da empresa para o estágio de crescimento em que ela se encontra. “Em qualquer desligamento cuidamos muito das pessoas. Cada colaborador que saiu neste momento foi comunicado individualmente e estendemos benefícios como o plano de saúde”, disse.

Uma pessoa diretamente afetada pelos desligamentos no Olist, e que preferiu não ser identificada porque as discussões são privadas, disse que os cortes foram uma surpresa já que há um mês a empresa estava em expansão. Recentemente, o Olist comprou as startups Clickspace, PAX, Tiny, Vnda e anunciou sua expansão para o México.

“A agenda do Olist continua sendo muito positiva, estamos com capital fresco, com investimento controlado e com disciplina. A gente se mantém muito forte e temos mais de 100 vagas abertas, seguimos contratando”, disse Dalvi. “É nosso papel ser responsável neste momento de incerteza do mercado e recondicionar a empresa para o crescimento que a gente espera gerar neste ano e nos próximos, sendo o dono do nosso próprio destino.”

Creditas: cortes por performance

A fintech de crédito com garantia Creditas recebeu seu cheque Série F em janeiro, US$ 260 milhões da Fidelity Management, com participação da Actyus, Greentrail Capital, QED Investors, VEF, SoftBank, Kaszek, Lightrock, Headline, Wellington Management e Advent International.

Depois que a Bloomberg Línea publicou uma matéria sobre as recentes demissões em unicórnios brasileiros, três pessoas familiarizadas com o assunto disseram que os cortes foram bem maiores do que os 11 desligamentos que a Creditas reportou. Segundo essas pessoas, as vagas e as promoções teriam sido congeladas e cerca de 9% da empresa - de 300 a 400 pessoas - teriam sido mandadas embora.

Mas uma pessoa familiarizada com o assunto que preferiu não se identificar disse que de janeiro a abril o time da Creditas se manteve constante, embora sem crescimento na equipe, e que, se comparado com o ano passado, o time cresceu. Ele afirma que as contratações nos últimos quatro meses compensaram as saídas.

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Segundo essa pessoa, desde o começo deste ano mais de 100 pessoas deixaram a empresa, seja por decisão própria ou por desempenho ruim em análises de performance. “Há novas contratações, inclusive algumas acontecendo antes dos desligamentos, já que a Creditas prevê as pessoas que irão sair”, disse.

Essa pessoa afirmou ainda que fevereiro e março foram meses recordes de contratação na Creditas, com quase 600 novos funcionários. Já em abril e maio houve menos contratações porque a empresa já tinha feito as substituições para aqueles que iriam sair por causa da alegada má performance.

Segundo essa pessoa familiarizada com as discussões, os movimentos de demissões não têm relação com as captações, já que a empresa está capitalizada após a rodada de janeiro que colocou a Creditas entre as cinco startups de capital fechado mais valiosas da região, com um valuation de US$ 4,8 bilhões.

A Kavak é avaliada em US$ 8,7 bilhões, o Rappi, em US$ 5,25 bilhões, e o QuintoAndar, em US$ 5,1 bilhões. O QuintoAndar também fez demissões recentemente, mas contratou a americana Larissa Fontaine, ex-Google, para ser a nova Chief Product Officer, além de ter anunciado um marketplace.

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Mesmo assim, com juros mais altos, a Creditas será mais conservadora com a qualidade do crédito em 2022 e espera duplicar sua receita em relação ao ano passado.

Segundo a Creditas, o processo de análise de performance é o mesmo há dois anos e os funcionários são medidos por desempenho e aderência à cultura. Se esses funcionários passarem três meses performando abaixo de 80%, eles podem ser desligados.

Kavak: modelo que queima caixa

A Kavak chegou ao maior mercado da América Latina com grandes ambições. Uma delas foi a expansão para o Rio de Janeiro, anunciada no início deste ano.

No ano passado, a Kavak disse que investiria R$ 2,5 bilhões no Brasil. Desse montante, a empresa destinou inicialmente R$ 550 milhões para o estado do Rio, que seriam utilizados para estabelecer a operação e comprar carros usados.

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Na Kavak City, em São Paulo, todos os esforços são feitos para apresentar a empresa não como uma concorrente do setor de veículos, mas como uma big tech. Ao longo do caminho, os consumidores têm computadores à disposição para consultar o site da empresa. A ideia é mostrar que tudo aquilo pode ser feito digitalmente. É um modelo semelhante ao da empresa americana Carvana, varejista online de carros usados nos Estados Unidos.

A Kavak não divulgou ter feito qualquer demissão. Mas, para Carvana, o momento não é bom. “Queimadora” de caixa, a empresa teve que fazer cortes. O fundador da Carvana, Ernie Garcia III, viu uma queda de 90% em seu patrimônio líquido. No primeiro trimestre, a Tiger Global e a Maverick optaram por aumentar suas participações na concessionária de carros usados porque as ações despencaram.

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Embora a venda ou compra de um carro pela Carvana possa ser feita de forma online, existem sérias limitações para digitalizar o trabalho de inspeção e licitação de veículos usados, transportá-los para recondicionamento e, muitas vezes, movê-los de volta para o local onde são revendidos. Tudo isso é um trabalho caro e competitivo. Crescer significativamente mais rápido do que as redes de varejo e os revendedores familiares com os quais a empresa compete todos os dias em sites de leilão, ou para as trocas de consumidores que compram on-line pelo melhor negócio, não é tarefa trivial.

A Carvana seguiu uma estratégia de crescimento a todo custo para devorar o máximo de estoque possível em um momento em que todos os participantes do setor estavam sentindo pressões de oferta e pagando muito caro por veículos usados em leilão.

O acerto de contas veio em fevereiro, quando a Carvana sucumbiu à escassez de modelos que assola o setor e registrou seu primeiro declínio sequencial nas vendas trimestrais no varejo.

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Enquanto isso, o fluxo de caixa livre consistentemente negativo da Carvana piorou: a empresa gastou quase US$ 4 bilhões desde o início do ano passado e publicou um plano operacional atualizado de 53 páginas para tentar controlar as despesas e priorizar a rentabilidade e o fluxo de caixa positivo.

Analistas do JPMorgan disseram em um relatório sobre a Carvana que “não necessariamente vemos o modelo de negócios da empresa como muito superior ou disruptivo para o mercado”, escreveu Rajat Gupta.

Tradicionalmente uma fintech, a Creditas também se aventurou em um modelo de negócios de compra e venda de seminovos por e-commerce com a compra da Volanty no ano passado. Na Índia, a Cars24, de venda de veículos online, que tem o SoftBank entre seus investidores, também fez demissões. Procurado, o SoftBank disse que não tinha nada a dizer sobre esse caso específico, mas que a Kavak é uma das startups mais bem-sucedidas na América Latina e que o conglomerado segue confiante em seu desenvolvimento e crescimento.

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Hoje, a Kavak é a startup com maior avaliação da América Latina e construiu um negócio intensivo em capital e que requer infraestrutura. A Kavak conseguiu vender sua ideia de corrigir a assimetria de informação das vendas de carros usados - o vendedor sabe o que está vendendo, mas o comprador não sabe o que está comprando - para os maiores capitalistas de risco do mundo, como Tiger Global, D1 e SoftBank. Tiger Global e D1 recentemente reduziram sua participação no unicórnio de pagamentos uruguaio dLocal.

A Kavak não é lucrativa porque financia seu crescimento. Antes de gerar liquidez para seus investidores com um IPO (o que não deve acontecer neste ano, como o cofundador Roger Laughlin disse à Bloomberg Línea no início deste ano), a Kavak tinha uma estratégia de crescimento não apenas na América Latina mas também fora da região.

“Sempre vimos a Kavak como uma solução global”, disse Laughlin no começo do ano. Falando à Bloomberg News, uma pessoa familiarizada com o assunto disse que a startup estava de olho na Turquia como seu próximo alvo. “Buscamos mercados grandes e complexos onde a experiência de compra e venda de um carro é muito problemática”, disse o executivo, à época.

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Em entrevista à Bloomberg Línea, o presidente da Fenauto (Federação Nacional das Associações dos Revendedores de Veículos Automotores), Enilson Sales, disse que por mais inovador que seja o negócio da Carvana, em algum momento a empresa iria se confrontar com a realidade do custo do dinheiro.

“Se eu tenho um negócio de compra e venda de veículos que abri com meu capital, eu sei o custo do capital e o vencimento que tenho que pagar por esse capital que investi. É muito mais flexível, porque como eu abri o negócio, os juros (taxa de recuperação) e prazos de quando esse capital será recuperado, eu negocio comigo mesmo”, explica.

Mas, Sales lembra que o modelo da Carvana, que se parece muito com a iniciativa latino-americana, utiliza capital de terceiros, seja por rodadas privadas com investidores, como a Kavak, ou dos acionistas em bolsa.

“Nestes casos, as empresas têm que cumprir um prazo pré-estabelecido com os juros de mercado, que oscilam. Essas empresas alavancadas por capital de terceiros terão que ser mais eficientes do que as empresas que trabalham com capital próprio”, disse.

Além disso, no Brasil, o preço dos veículos usados caiu 0,5% desde o início do ano. Para empresas que usaram capital externo para comprar carros no começo do ano, o problema pode ser ainda maior tendo que vender este veículo mais barato e ao mesmo tempo remunerar o investidor, segundo Sales.

“Acho que o preço dos veículos usados ainda pode cair por mais três meses de forma sutil. Se vai se manter ou acelerar, depende da quantidade de veículos novos no mercado. Esse mercado vem se estabelecendo em patamares que ainda não são os que gostaríamos, mas vem se recuperando”, disse.

Dados da Fenauto mostram que o Brasil começou o ano vendendo em média 40 mil carros usados por dia útil, bem abaixo da média de janeiro de 2021, que era de 58 mil, e menor do que em 2019, quando a média diária era de 52 mil.

Média de vendas de seminovos no Brasil por dia útil, segundo dados da Fenautodfd

Em fevereiro, a média de vendas por dia útil foi de 41 mil, contra 62 mil em 2021 e 56 mil em fevereiro de 2019. Em março deste ano a média foi de quase 51 mil, abril de 52 mil e maio também 52 mil, ainda em patamares menores do que no último ano.

Estamos estabilizando a venda de carros usados em um patamar razoável contra os dois primeiros meses que foram muito ruins. A minha perspectiva é de que no segundo semestre daremos um salto porque a economia ficará mais irrigada com os estados capitalizados”, opina Sales. Isso acontece porque os estados brasileiros de forma geral tiveram superávit por conta dos congelamentos de gastos na pandemia. Segundo Sales, a economia brasileira poderá ter maior movimentação no segundo semestre com as campanhas eleitorais.

Procurada para falar sobre a situação da Carvana e seus impactos no modelo de negócio na América Latina, a Kavak não quis comentar.

-- Com informações da Bloomberg News

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Isabela  Fleischmann

Jornalista brasileira especializada na cobertura de tecnologia, inovação e startups