Lei dificulta aproveitamento de órgãos para transplante
Tempo de leitura: 4 minutos

(Bloomberg Opinion) – A morte não pode ser negada, mas pode ser alterada. Em 1981, a Uniform Law Commission propôs uma lei-modelo para determinar a morte, estabelecendo que um indivíduo morre quando ocorre uma interrupção irreversível das funções respiratória e circulatória ou das funções cerebrais. A maior parte dos estados dos EUA adotaram a definição, outros adotaram o texto literal.

Essa comissão atualmente pondera se a definição deve ser revisada. Uma das propostas tem ganhado adeptos influentes, mas apresenta obstáculos que devem impedir seu sucesso.

Essa proposta possui três elementos fundamentais. Primeiramente, especificar que as diretrizes médicas atuais devem ser seguidas para diagnosticar morte cerebral – a lei atual não apresenta essa disposição. Então, enumerar os critérios de morte cerebral que permitiriam sua declaração mesmo quando os pacientes apresentam algumas funções no hipotálamo – uma estrutura do cérebro. Por fim, permitir que médicos dispensem o consentimento de um familiar antes de realizar um teste de apneia, ou seja, verificar se o paciente pode respirar espontaneamente para confirmar a morte cerebral.

A revisão oferece muitas possíveis vantagens. A principal é alinhar melhor a lei e a prática médica: a lei especifica que “todas as funções do cérebro” devem ter sido interrompidas irreversivelmente, ao passo que as diretrizes médicas para declaração de óbito não exijam a verificação da função do hipotálamo.

PUBLICIDADE

Por que não alinhar as diretrizes de forma que cumpram a lei atual? Seguir a lei à risca, segundo um dos autores da proposta, provavelmente levaria à escassez da disponibilidade de órgãos para transplante, pois os médicos não poderiam remover os órgãos de pacientes com funções no hipotálamo. Assim, é preferível mudar a lei.

As revisões também adiantariam a uniformidade da lei. A inexistência de uma disposição da lei atual sobre a forma como a morte cerebral é diagnosticada significa que alguém pode estar legalmente morto no estado de Nevada e vivo no estado do Kansas.

Apesar de todos os argumentos em favor da revisão, mais de 100 especialistas em medicina, direito, filosofia e bioética assinaram uma declaração de oposição organizada por Daniel Alan Shewmon, professor emérito de neurologia pediátrica da UCLA. Pessoas do mundo todo assinaram a declaração – que observa que a revisão da lei nos Estados Unidos pode causar um “efeito dominó” global – e apresentaram pontos de vista distintos sobre como a morte deve ser determinada, juntamente com as questões a ela relacionadas.

PUBLICIDADE

John Finnis, professor emérito de filosofia da Universidade de Oxford e professor de direito em Notre Dame, muito conhecido por acreditar na santidade da vida humana, foi um dos signatários, assim como Peter Singer, professor de bioética da Universidade de Princeton, que rejeita expressamente o princípio de santidade da vida e é conhecido por seus argumentos práticos em favor da permissibilidade moral do aborto, do infanticídio e da eutanásia.

A declaração de Shewmon gera uma séria objeção a cada uma das partes da revisão, por exemplo, argumentando que as diretrizes atuais apresentam um risco alto de classificar as pessoas como mortas quando de fato não estão. Isso pode ocorrer, por exemplo, em alguns casos nos quais o fluxo sanguíneo cai a um nível que inibe as funções cerebrais mas que pode ser revertido a um nível mais alto. Os pacientes também podem ser classificados como mortos, segundo a declaração, se forem considerados em coma por não apresentarem resposta, mesmo se possivelmente estiverem conscientes.

A declaração enumera vários exemplos de pacientes que sobreviveram mesmo após atenderem aos critérios de óbito e observa que provavelmente haveria mais casos se esses critérios não levassem ao desligamento de aparelhos ou remoção dos órgãos.

Os especialistas insistem que é necessário obter o consentimento informado para um teste de apneia, “já que muitos outros procedimentos muito mais benéficos e muito menos arriscados o exigem”. Se o paciente estiver debilitado o suficiente, o teste pode justamente causar a morte cerebral que se busca diagnosticar.

PUBLICIDADE

Os signatários sugerem, embora não afirmem explicitamente, que o teste é simplesmente antiético (“é duvidoso que qualquer familiar consentiria com o procedimento depois de ser verdadeiramente informado sobre ele”).

O ponto de vista de Singer deve ser levado em consideração. Em princípio, ele não apresenta objeções contra a retirada de órgãos de seres humanos vivos, causando sua morte; ele já declarou por escrito que, por vezes, é a coisa certa a fazer. Contudo, ele não é favorável a mudar as normas para declarar o óbito de forma a esconder o que é feito. Ele só deseja que o procedimento seja realizado de forma clara.

Porém quem discorda de sua ética deve concordar com sua definição. Existe um argumento prático a ser apresentado: as pessoas podem se tornar menos dispostas a se autodesignarem doadoras de órgãos se acreditarem que a busca por órgãos viáveis mudará o tratamento dos pacientes.

PUBLICIDADE

“Ao atenuar essa linha, os familiares dos pacientes começarão a pensar que estamos incentivando o desligamento dos aparelhos para retirar os órgãos”, afirma Aaron Kheriaty, diretor de ética médica da UCI Health.

Contudo, em última instância, esse argumento sólido é secundário. Devemos resistir fortemente a um sistema de classificação de óbito que não é inclusivo – afinal, esse é nosso pior pesadelo.

Leia mais em Bloomberg.com