Tráfico se reinventa na América Latina com modelo em pirâmide e investidores ocultos

Um pesquisador do International Crisis Group e um ex-chefe de operações internacionais da DEA contam à Bloomberg Línea como as redes criminosas mudaram na região e as suas consequências

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Bloomberg Línea — Esta é a primeira de duas partes de uma reportagem da Bloomberg Línea sobre a mutação do tráfico de drogas na região.

O tráfico global de drogas, que tem a América Latina como protagonista, está mais resistente e difícil de combater do que nunca, devido à fragmentação das redes criminosas e à sua capacidade de se manter à tona, apesar da captura de conhecidos chefões do crime organizado.

No entanto os governos continuam a se basear em políticas de “mão pesada”, de acordo com um relatório do International Crisis Group (ICG).

Paradoxalmente, “os esforços das autoridades para combater as organizações de tráfico de drogas resultaram em uma rede mais fragmentada, com mais atores envolvidos e uma cadeia mais atomizada”, disse Elizabeth Dickinson, analista sênior do ICG para os Andes, à Bloomberg Línea.

Essa rede mais fragmentada e atomizada fez com que os tentáculos do tráfico de drogas se estendessem para Costa Rica, Equador e Guatemala, que até recentemente eram relativamente intocados por essa economia clandestina e ilegal.

A consequência, conhecida por outros países, é o aumento da violência em comunidades vulneráveis.

O Equador encerrou 2024 com uma taxa de 38,76 mortes violentas por 100.000 habitantes, a segunda pior de sua história, segundo dados da Polícia Nacional; na América Latina, só foi superado pelo Haiti, com 60 homicídios por 100.000 habitantes, segundo dados do Statista.

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A Costa Rica, um país que tem uma força policial, mas não tem exército, e que atualmente desempenha o papel de “ponto de trânsito” nas rotas do tráfico de drogas, corre o risco de “muito facilmente se tornar um narcoestado”, disse Mike Vigil, ex-chefe de operações internacionais da Drug Enforcement Administration, a DEA, à Bloomberg Línea.

E na Guatemala, especificamente no departamento de Alta Verapaz, agricultores colombianos estão sendo contratados para consolidar a expansão do cultivo de coca, diz o relatório do ICG.

De forma alarmante, o primeiro cultivo dessa planta no país só foi identificado em meados de 2018, documenta uma publicação da Polícia Antinarcóticos.

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Uma rede criminosa mais ‘atomizada’

A principal mudança nas organizações do narcotráfico é que agora elas não têm o controle de todo o negócio, desde a produção até a entrega da droga ao consumidor, como o antigo Cartel de Medellín, por exemplo, mas desempenham principalmente um único papel em toda a cadeia, o que dificulta seu desmantelamento, apesar da captura de chefões de alto nível.

“As capturas de alto nível geram vitórias de curto prazo, mas alimentam repetidamente novas ondas de violência, além de reconfigurar o comércio de drogas de forma a torná-lo mais resistente às operações de segurança”, diz o relatório.

A atual cadeia do tráfico de drogas tem quatro níveis, de acordo com o relatório, e no topo estão os “investidores”, que fornecem o capital inicial para abrir novas rotas, inclusive na Ásia e na Oceania.

“São empresários, políticos, pessoas da elite que têm acesso ao sistema bancário”, diz Dickinson. “Pessoas no México, por exemplo, que podem facilitar a entrada de precursores químicos do fentanil, com suas empresas de importação e exportação.”

O relatório explica que é fundamental para os “investidores” penetrarem na elite política e empresarial de alguns países ao longo da cadeia de suprimentos, bem como em “paraísos fiscais como Dubai e Panamá”, para lavar ativos e acessar o sistema bancário.

Em segundo lugar na pirâmide, a dos “traficantes globais”, estão o Cartel de Jalisco Nova Geração e o Cartel de Sinaloa, bem como o Primeiro Comando da Capital do Brasil, que controlam quase toda a logística transnacional do tráfico de drogas.

Somente o Cartel de Jalisco Nova Geração tem “associados, facilitadores e intermediários em todos os 50 estados dos EUA e em mais de 40 países”, documenta o Departamento de Justiça dos EUA.

Para não expor sua imagem, os investidores fazem contato com os traficantes globais por meio de emissários e, devido ao seu poder, “muitas vezes estão a salvo de investigações”, diz Dickinson.

As agora extintas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), o maior grupo guerrilheiro do hemisfério ocidental até 2016, quando assinaram um acordo de paz com o governo do ex-presidente Juan Manuel Santos, faziam parte dos traficantes globais, mas seu espaço foi tomado pelos cartéis mexicanos e permitiu que os grupos criminosos equatorianos se tornassem mais importantes na cadeia de suprimentos.

“Quando as Farc assinaram o acordo de paz, elas deixaram muitas regiões no sul da Colômbia, perto do Equador”, diz Mike Vigil. “Esse vácuo foi explorado por grupos como Los Choneros ou os grandes cartéis do México, o Cartel de Sinaloa e o Cartel de Jalisco Nova Geração”.

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Equador

Grupos criminosos como Los Lobos e Los Choneros no Equador fazem parte do terceiro nível da pirâmide do tráfico de drogas. Sua missão é “garantir o fornecimento de produtos aos traficantes internacionais ou gerenciar esses produtos em uma determinada parte da rota do tráfico”, diz o relatório.

O Equador está localizado entre a Colômbia e o Peru, os dois maiores países produtores de coca do mundo, com 65% e 27% do cultivo de coca, respectivamente, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

A função dos grupos criminosos equatorianos dentro da cadeia internacional é receber cocaína ou, em alguns casos, pasta de coca não refinada, bem como maconha, e depois enviá-la para o norte do continente e para a Europa por meio do Oceano Pacífico.

“Quando a <b>cocaína </b>entra no Equador, geralmente pelo sul da Colômbia, ela é transferida para os portos de Esmeraldas e Guayaquil, onde também há grupos criminosos albaneses. Embora o porto colombiano de Buenaventura continue a ser usado.”

Mike Vigil, ex-chefe de operações internacionais da DEA

Desses locais, as drogas partem para países de trânsito, como a Costa Rica, e depois para o México, antes de entrar nos Estados Unidos. Ela também sai em contêineres que chegam à Europa, onde o consumo aumentou 80% desde 2011, de acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas 2024.

Embora a maior parte da coca colombiana chegue ao Equador já refinada, ela também está sendo refinada no país e, às vezes, enviada não refinada para a Europa, revela o relatório do ICG.

Em 12 de abril, o exército equatoriano desmantelou dois laboratórios de cocaína na província de Carchi, na fronteira com a Colômbia.

Vigil, ex-chefe de operações da DEA, argumenta que, embora seja possível que a coca chegue ao seu destino final sem ser refinada, isso deve ocorrer em uma escala menor.

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“Nem os Estados Unidos nem a Europa querem cocaína em pasta ou em forma de base. Eles querem cocaína refinada e, se ela chegar não refinada, é uma quantidade insignificante”, diz Vigil.

Entrevistas realizadas pelo International Crisis Group mostram que um quilo de pasta de coca do sul da Colômbia é vendido por US$ 550 na fronteira com o Equador, US$ 800 em Esmeraldas e US$ 1.000 em Guayaquil. Depois de refinada, o preço ao sair do Equador é de US$ 2.000 e, ao entrar na Europa Ocidental, de US$ 40.000.

A cocaína sai do Equador em lanchas rápidas que embarcam em navios porta-contêineres ou camufladas em exportações de bananas, uma “tradição” herdada da Colômbia, segundo Dickinson, já que os contêineres são carregados diretamente nas fazendas e depois levados rapidamente para os portos para evitar danos às frutas.

No caso da Colômbia, a violência nas regiões está relacionada à busca pelo controle territorial nas zonas de produção, armazenamento e processamento de coca, entre grupos dissidentes das Farc, do ELN e do Clan del Golfo.

E, no Equador, a disputa entre grupos criminosos está associada à hegemonia da base de coca ou das rotas de transporte de cocaína. O objetivo comum é demonstrar poder para estabelecer relações com os cartéis mexicanos.

“O problema do narcotráfico é que ele cria uma capacidade e dá poder aos grupos com armas e capacidade econômica, o que facilita a entrada deles em outros mercados”, diz Dickinson.

É o quarto e último nível da cadeia do tráfico de drogas, ou seja, “os grupos urbanos de controle e distribuição”, que são pagos com armas e a possibilidade de vender drogas em menor escala, segundo o especialista.

A questão não é de menor importância, pois impulsiona outras rendas criminosas, incluindo extorsão e sequestro.

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Na Colômbia, há um caso representativo, o dos Shottas e Espartanos, estruturas criminosas com presença no distrito portuário de Buenaventura e influência em Cali, Valle del Cauca.

Ambas as gangues nasceram em 2021 após o desmembramento da estrutura criminosa La Local em Buenaventura, disse Linda Posso, coordenadora da Fundação Paz e Reconciliação (PARES) no Pacífico colombiano, à Bloomberg Línea.

La Local, por sua vez, surgiu como uma facção de La Empresa, uma organização de propriedade da família Bustamante em Buenaventura e formada por ex-combatentes das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) desmobilizados em 2006.

Uma hipótese de Pares é que o ELN está tentando entrar na área urbana de Buenaventura com a “permissão” dos Shottas e do Clã do Golfo dos Espartanos, o que aumenta a disputa.

“Um erro cometido é entender essas gangues como ‘pequenos grupos’ que estão lutando pelo microtráfico; estamos falando do fato de que elas fazem parte de estruturas criminosas que podem ter influência transnacional”, diz Posso.

“Acreditamos que elas têm toda a capacidade, não apenas em termos de armas mas também em termos de redes, o que lhes permitiu se consolidar.

E embora Shottas e Espartanos tenham mantido mais de uma trégua no contexto da política de paz total do governo do presidente Gustavo Petro, que em alguns períodos levou a uma redução dos homicídios e a compromissos como o de não recrutar menores, a verdade é que houve momentos em que os habitantes de alguns bairros de Buenaventura não podem “sequer dar dois passos para fora de casa porque são mortos”, devido ao fato de as gangues dividirem o território com fronteiras invisíveis.

“Essas tensões continuam complexas”, diz Posso.

“Recentemente, as gangues romperam a trégua porque mataram o filho de um chefe do Los Chiquillos, conhecido como Rober, e o Los Chiquillos é um braço do Espartanos. Houve um número alarmante de homicídios em março.”

Linda Posso, coordenadora da Fundação Paz e Reconciliação no Pacífico colombiano

Em Durán, uma cidade localizada na província de Guayas, no Equador, algo semelhante está acontecendo com os Latin Kings e os Chone Killers, que “estão em guerra para exercer sua influência sobre as economias criminosas”, analisa a pesquisa da Insightcrime, uma fundação dedicada ao estudo e à pesquisa de ameaças à segurança na América Latina.

Ambas as estruturas foram declaradas “grupos terroristas” pelo governo de Daniel Noboa em janeiro de 2024, em meio à declaração de conflito armado interno.

“Antes, você podia andar pelo Equador às 3 horas da manhã e ninguém o incomodava. Agora isso é impossível, porque os criminosos estão assumindo o controle”, diz Vigil.

O Relatório de Segurança Global 2024 da Gallup, que classifica o Equador como o país onde as pessoas se sentem menos seguras andando à noite, atesta suas palavras.

“Apenas 11% dos residentes da província mais populosa do Equador, Guayas, disseram que se sentem seguros, a porcentagem mais baixa de qualquer região do mundo, sem incluir zonas de guerra ativas”, diz a Gallup.

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O papel da Costa Rica

A Costa Rica, que havia evitado ser “absorvida” pelas redes de tráfico de drogas, agora recebe grandes quantidades de cocaína e maconha, em alguns casos do Equador.

“Esse país tem polícia, mas não tem exército, então falta muita segurança. É também um ponto-chave, porque fica no sul da América Central e, quando as drogas chegam a esse ponto, podem ser transportadas por estrada até chegar ao México”, explica o ex-agente da DEA.

Vigil descreve as redes de narcotráfico como um “exército de formigas”, sempre à procura dos pontos mais fracos para criar novas rotas a fim de evitar ser preso e evitar apreender a menor quantidade possível de drogas.

“Os EUA têm recursos sofisticados de radar, aeronaves e navios no Caribe para detectar esses carregamentos, mas não têm tantos no Pacífico.”

E se eles escolhem o Equador como ponto de partida para as drogas e a Costa Rica como ponto intermediário antes de chegarem ao México, isso também se deve às suas “forças de segurança mal preparadas”, diz o relatório do ICG.

O problema na Costa Rica e no Equador é que essa dinâmica já provoca ondas de violência.

Uma disputa territorial entre duas facções da organização criminosa Los Tiguerones no Equador, em 6 de março, terminou em um massacre que custou a vida de 22 moradores de Nueva Prosperina, em Guayaquil, de acordo com a polícia.

E na Costa Rica, onde o Ministério da Segurança Pública identifica 340 organizações dedicadas a aluguéis ilegais, a situação é semelhante.

“As pessoas que formam os grupos criminosos, quando são cercadas por um grupo rival ou pela polícia, tentam repeli-los com suas armas”, disse o diretor da Organização de Investigação Judicial (OIJ) da Costa Rica, Randall Zúñiga, à imprensa nacional.

Assim como o Equador, a Costa Rica também teve o segundo ano mais violento de sua história em 2024, atrás apenas para 2023, com uma taxa de 16,6 mortes por 100.000 habitantes, informou o OIJ em janeiro de 2025.

O risco, no entanto, é que o problema do tráfico de drogas no país se espalhe, como em Honduras, que deixou de ser um ponto de trânsito para ter grandes plantações de coca e laboratórios para processá-la; ou, em menor escala, como na Guatemala, onde “agricultores colombianos estão sendo contratados” para plantar coca, diz o relatório do International Crisis Group.

As ordens para trazer agricultores colombianos experientes para a Guatemala viriam dos cartéis Jalisco Nueva Generación e Sinaloa, “que já têm raízes lá”, diz Vigil.